Coração
Tomo Nevibolol todos os dias, religiosamente, como quem toma o pequeno-almoço ou lava os dentes. Supostamente, esta maravilha farmacêutica deveria fazer o meu coração acalmar-se, comportar-se como um cidadão exemplar. Mas não. Parece que o meu coração tem aspirações de atleta olímpico e quer correr, correr como se estivesse no meio de uma maratona — sem linha de chegada à vista. António Variações cantava que “quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga” e, sinceramente, nunca nada me pareceu tão profético.
Aliás, o António não estava sozinho. Amália Rodrigues também me entendia quando cantava:
“Pára, pára,
Pára, coração,
Já não tens razão,
De bater assim...”
Amália, se soubesses o quanto eu canto essa letra em silêncio, todas as vezes que o meu coração decide que está na hora de fazer um sprint desnecessário. Já tentei conversar com ele, explicar-lhe: "Coraçãozinho, pára com isso. Estamos só a ver televisão, não estamos a fugir de um incêndio!" Mas parece que ele não me ouve. Continua a bater descompassado, como um tambor de escola de samba desgovernado, e eu cá fico, à espera que se canse da sua própria falta de noção. Se calhar, o coração é a única parte do meu corpo que não percebeu ainda que vou morrer. Está numa corrida sozinho, e eu? Eu só quero que ele baixe o volume dessa festa cardíaca.
O mais irónico é que não tenho medo de morrer. Aliás, nunca estive tão em paz com a ideia de que um dia este coração idiota vai parar de bater. Não há terror nisso, só um cansaço antecipado. Porque, ao contrário de muita gente, eu já me reconciliei com o facto de que a vida acaba. E quando acabar, que seja com dignidade, não com o meu coração a fazer o último espetáculo pirotécnico. Para que todo este drama? Parece que o meu corpo ainda não recebeu o memorando de que a morte é a única certeza que temos. Ele acha que tem de lutar até ao fim, como um soldado num filme de guerra. Mas eu? Eu só queria que ele seguisse o plano e se acalmasse.
Claro, os médicos disseram-me: "É o sistema nervoso, tens de respirar fundo, fazer ioga, meditar". Como se respirar fundo fosse fazer o meu coração perceber que está a bater como um maluco. Meditar? A sério? Eu a tentar imitar um monge zen, e o meu coração, o sacana, a bater mais rápido só para contrariar. Se calhar, ele pensa que me está a salvar de um ataque de ansiedade ou algo do género. Mas, querido coração, não estou ansiosa, só estou deitada, a ver um filme chato na Netflix, não há motivo para este circo. Eu, ali, de olhos fechados, a tentar alcançar a paz interior, e o meu coração a correr como se estivesse num festival de música eletrónica. Não se pode meditar quando tens uma rave no peito, é a verdade.
E depois, vem a tal música da Amália. Oh, como eu a entendo. "Pára de correr, coração..." Já não tens razão, de bater assim. Mas não, o meu coração insiste. Talvez ele ache que, se continuar a bater depressa, vai ganhar algum prémio. Mas no fim? No fim, ninguém ganha nada. Se há alguma coisa que aprendi é que, quer o coração bata devagar ou a mil à hora, o resultado final é o mesmo. Todos vamos parar. E não, não tenho medo desse momento. A única coisa que me irrita é a performance dramática que o meu corpo insiste em dar antes de a cortina descer.
António Variações estava certo, a cabeça é que não tem juízo. O meu cérebro está sempre numa espécie de overdrive, a pensar em mil coisas ao mesmo tempo, a preocupar-se com as coisas mais ridículas — como por que nunca consegui aprender a dobrar lençóis com elástico — enquanto o corpo paga a conta. E o meu coração, pobre coitado, acha que tem de compensar pela inércia da minha sanidade mental. Está a fazer cardio enquanto eu estou a pensar em por que raio a torradeira queima sempre o pão, mesmo na temperatura mais baixa.
Mas o que é que se faz? Coração teimoso, cabeça perdida, corpo que paga. Já desisti de lutar contra isto. Afinal, vou morrer, e isso já está decidido há muito tempo. Agora, se o meu coração insiste em fazer a última festa antes de me abandonar, que seja. Que toque os tambores, que faça o seu show. Eu só vou sentar-me, com o meu Nevibolol numa mão e um copo de vinho na outra, a observar este espetáculo trágico-cómico que é a vida. Afinal, no fim, todos pagamos a conta... com juros.