Bagagem

 Cada um de nós carrega a sua própria bagagem, um conjunto íntimo de vivências que ninguém mais consegue decifrar por completo. Não possuímos uma visão de raio-X, como aquela das esteiras nos aeroportos, que permita desvendar o que realmente se esconde dentro dos outros. Mesmo que tentemos explicar, que nos esforcemos por traduzir em palavras aquilo que trazemos no coração, a compreensão plena parece sempre escapar-nos, porque, no fundo, somos criaturas complexas. Muitas vezes, não conseguimos sequer entender-nos a nós mesmas. Há uma intricada teia de distorções, de traumas silenciosamente acumulados, que se manifestam, não raras vezes, nos momentos mais impróprios e desconcertantes.

Dou por mim, por vezes, a desabar diante de um filme aparentemente inofensivo, a soltar lágrimas que brotam de uma dor antiga, há muito escondida. Ou então, num gesto banal, num tropeção sem significado aparente, a memória de um peso invisível toma conta de mim, e surge aquele impulso de desabafar, de me declarar, como se o "nada" fosse a justificação perfeita. Sei que, aos olhos dos outros, pode parecer uma reacção sem sentido, uma explosão sem razão lógica. Mas há uma razão, ainda que enraizada nas profundezas do que já fui, do que já vivi, e talvez apenas eu saiba o real alcance desse fardo.

Sobreviver, percebo agora, é muito mais do que simplesmente seguir em frente. É, acima de tudo, reconhecer nas adversidades oportunidades de renascer, de recomeçar. Não se trata de negar o passado ou de fugir dele, mas de olhar para ele como um processo inevitável de aprendizagem. Compreendo, hoje, que a vida é uma sequência interminável de janelas que se fecham enquanto portas se abrem. Por vezes, essas portas surgem diante de nós sem aviso, prontas para nos conduzir a novas possibilidades, novos horizontes. Mas para ver essas portas, para verdadeiramente as reconhecer, é preciso deixar de nos fixarmos nas fechaduras para as quais já não existem chaves.

Quantas vezes, na ânsia de tentar resolver o irresolúvel, me perdi a tentar abrir cadeados que, há muito, se fecharam para sempre? Quantas vezes insisti em procurar respostas em portas que o destino selou, desperdiçando tempo e energia em algo que não posso mudar? Este é um dos maiores desafios da vida: saber distinguir entre aquilo que devemos deixar para trás e aquilo que ainda pode ser transformado. E reconhecer que, ao prender-me ao que já passou, estou a impedir-me de abraçar o que ainda está por vir.

Não posso culpar os outros pelo que carrego, pois cada um tem a sua própria bagagem, igualmente difícil de decifrar. E, tal como eu, os outros também tropeçam, também choram sem motivo aparente, também lutam para dar sentido ao que vivem. A responsabilidade pelas minhas escolhas, pelos caminhos que tomei, pertence-me inteiramente. Não posso, nem devo, atirar esse peso para os ombros de quem cruzou o meu percurso.

E assim, aprendo, aos poucos, a lidar com as minhas próprias cicatrizes, a aceitar que há momentos em que as emoções irrompem de forma inesperada, que há dores que emergem sem explicação aparente. Aprendo a não ter vergonha das minhas vulnerabilidades, a não fugir dos meus sentimentos, mesmo quando me surpreendem. Porque sobreviver não é apenas resistir. É, também, abrir espaço para a aceitação do que já não posso mudar e para a possibilidade de um futuro diferente, pleno de novas janelas por abrir.

A vida, com toda a sua imprevisibilidade, ensina-me que é inútil fixar-me nos cadeados trancados do passado. Tenho de olhar em frente, com coragem, e estar disposta a reconhecer que, ao lado da porta fechada, pode muito bem estar uma nova abertura, uma oportunidade que só espera ser reconhecida. E, por mais pesada que seja a bagagem que levo comigo, sei que a vida tem o estranho e maravilhoso poder de oferecer sempre uma nova hipótese, um novo começo.

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