Natural
Será que alguma vez conseguirás sustentar o peso daquilo em que te tornaste? Quando todos à tua volta se renderam, tu permaneceste, não por força, mas por uma necessidade corrosiva de sobreviver, como quem não conhece outro caminho. Nesta casa que edificaste com dor e sacrifício, cada pedra está manchada pelo sangue do teu esforço. Nada aqui foi conquistado sem um preço amargo, sem que deixasses partes de ti para trás. Diz-me, quando olhas para esse futuro vazio que tanto desejas, será que as estrelas algum dia se alinharão em teu favor? Será que o céu, aquele mesmo céu que tantas vezes te ignorou, algum dia descerá para te salvar de ti mesma?
Mas quem és tu para clamar redenção? Esse é o preço que pagaste, e sabes disso, não é? Não foste apenas moldada pelas mãos cruéis do destino, foste cúmplice dessa frieza que agora te define. Abandonaste o teu coração como quem deixa algo irrelevante para trás. Tornaste-te um espectro deste mundo mecânico, um produto descartável de uma sociedade que celebra a crueldade. Preferiste ser a caçadora, a algoz, do que a presa impotente, e essa decisão está gravada em cada ruga precoce que o tempo te impôs.
E agora estás aqui, à beira do abismo, com a cabeça erguida numa dignidade oca, um reflexo daquilo que um dia foste. Tornaste-te uma estátua viva, um mármore frio e impenetrável, pois neste mundo, ser humana é sinónimo de derrota. A ternura, o carinho – essas palavras soam-te como piadas grotescas num palco vazio. Porque aprendeste que a sobrevivência requer mais do que apenas força. Requer que esmagues qualquer traço de vulnerabilidade. E, aos poucos, foste apagando o calor da tua alma, convencendo-te de que isso era a única maneira de persistir.
Mas dizes-me que ainda há luz, não dizes? Ou pelo menos algo que tenta imitar luz, perdido entre as sombras pesadas que carregas. Diz-me, quantas vezes acreditaste que haveria redenção, apenas para te encontrares de novo no mesmo buraco, escavado pela tua própria mão? Olhas para o teu reflexo distorcido e vês a máscara que fabricaste, esse semblante impassível que engana a todos, menos a ti mesma.
Porque a verdade é que sangras. Mesmo agora, no meio desse pretenso silêncio de alma, há uma dor latente que te consome. Mas és perita em esconder as cicatrizes, em varrer para debaixo do tapete todas as tuas derrotas. O que outrora foi uma chama ardente em ti, hoje não passa de um braseiro moribundo, alimentado apenas pela inércia de uma vida sem alma. Lutas contra o vazio, mas, secretamente, perguntas-te se talvez não seja melhor deixar-te afundar por completo, abraçar a escuridão que tanto temes.
E dizes que o juramento que fizeste – aquele pacto sangrento, selado com a dor das tuas próprias mãos – será a tua âncora, que nunca quebrarás. Mas o que há para quebrar, realmente? Tudo o que restou em ti já se despedaçou há muito. És uma sobrevivente, sim, mas a que custo? Aquele fio que te mantém ligada à vida é cada vez mais fino, mais frágil, e tu, fria como sempre, ficas à espera de que se rompa.
És, sem dúvida, uma “natural” na arte de te destruíres. Forjaste-te a partir das ruínas do que um dia foste, mas essa reconstrução não te trouxe redenção, trouxe-te apenas um novo tipo de prisão. Vives à mercê das tuas escolhas, sempre cortante, sempre cruel, porque acreditas que é assim que o mundo exige que sejas. E essa crença, esse fatalismo que te consome, não é mais do que a aceitação da tua própria tragédia.
No fundo, sabes que essa frieza te corroeu por completo. Não te transformou em alguém forte, apenas em alguém incapaz de sentir. E quando finalmente o silêncio te engolir, quando a tua alma, despojada de tudo, se confrontar com o vazio que criaste, vais perceber que nunca foi o mundo que te exigiu essa transformação. Foste tu, apenas tu, que optaste por abraçar a escuridão em vez de lutar pela luz.
E então, quando tudo se despedaçar, talvez percebas que o preço que pagaste foi, afinal, a tua própria humanidade.