Ofertas

 Hoje estava em casa, descansadíssima, quando logo após o almoço recebo um telefonema da minha prima-avó, que já conta 97 anos — a mulher é imortal, pelos vistos. Mas, tragicamente, o seu esposo faleceu. Setenta e seis anos de casamento. Se calhar, ele fugiu, mas pronto, ninguém quer ser maldoso. Ela estava, como é de esperar, desgostosa, cheia de tristeza. Entre suspiros e lamentos, a parte mais importante da conversa surgiu: pergunta-me se eu quero umas uvas. Eu, claro, digo logo que sim. Uvas? Gratuitas? Em época de crise? Nem hesitei. Agradeci, satisfeitíssima, já a imaginar uma tigela de uvas fresquinhas para o lanche.

Ela disse que, quando chegasse, avisava. Dez minutos depois, o meu telemóvel toca novamente. Desta vez, era ela: “Desce, já estou aqui em baixo.” Vou à janela e vejo o jipe do falecido. A filha a conduzir, e ela, a prima-avó, sentadinha ao lado, como quem faz um passeio de domingo. Chamam por mim com um entusiasmo suspeito e dizem para entrar. E eu? Estranhei. Mas entrei. Não perguntei nada. Apenas confiante nas uvas.

Lá fomos, e eu sem saber o que se passava, mas tranquila, porque afinal, tudo o que eu queria era as benditas uvas. Ora, quem me dera que fosse só isso. Chegamos a uma das fazendas dela, e ao sair do carro deparo-me com... caixas vazias e tesouras de poda. Aquele momento em que tudo faz sentido, mas demasiado tarde. Caiu-me a ficha: eu ia ter que apanhar as uvas. Para mim. Para a família. Para a segunda prima. Para quem mais aparecesse.

Começámos o trabalho. Eu, de luto forçado (não é que faltei à missa do falecido?), ali, no meio do calor, a apanhar uvas como se fosse o meu castigo por algum pecado que desconheço. Uvas para mim, uvas para todos. Horas e horas de suor, calor, as costas a gritar, e a minha segunda prima ao lado, ainda a dar ordens, como se estivesse na flor da juventude. Eu, sinceramente, estava com cara de quem já morreu há três semanas, só faltava o cheiro. Quando finalmente terminámos, a caixa estava cheia, e eu, completamente arrebentada.

Como se não bastasse, a minha prima faz questão de me pagar... pelo "favor". Quem me visse, diria que eu estava pronta para ir deitar-me na campa ao lado do falecido. Moral da história: cuidado com as ofertas. Se parece bom demais, é porque, provavelmente, vais acabar a apanhar uvas com cara de defunta.

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