O Livro à Beira do Tejo
Na pacata vila à beira do rio Tejo, onde o tempo parecia ter parado e as histórias eram contadas ao vento, algo incomum estava prestes a acontecer.
Era uma tarde fria de outono. As folhas douradas caíam lentamente das árvores, formando um tapete espesso no pequeno parque que se estendia até a margem do rio. Uma jovem com olhos curiosos e um fascínio por mistérios, costumava passear por ali após o trabalho. Sempre havia algo de reconfortante no som das águas e no sussurro das árvores que a cercavam.
Naquela tarde, no entanto, algo chamou sua atenção. No banco de madeira mais afastado, coberto por folhas secas, estava um livro. A capa era de couro envelhecido, marcada pelo tempo e adornada com símbolos estranhos que ela nunca havia visto antes. Não parecia ser um livro comum; havia algo nele que a atraía de maneira inexplicável.
Ela olhou ao redor, mas o parque estava deserto. O sol já começava a se esconder por trás das colinas, lançando uma luz alaranjada sobre o Tejo. Sem saber exatamente o porquê, sentiu um arrepio na espinha ao estender a mão para o livro.
Quando seus dedos tocaram a capa fria, uma rajada de vento varreu o parque, levantando as folhas do chão em uma dança caótica. Ela abriu o livro, e as páginas, surpreendentemente bem conservadas, estavam repletas de textos escritos em uma língua desconhecida, mesclados com desenhos de criaturas estranhas e mapas de lugares que não existiam em nenhum mapa que ela conhecia.
Mas o que mais a assustou foi a última página. Diferente das outras, esta estava em branco, exceto por uma única frase escrita em português, com uma caligrafia elegante: "O que foi perdido nas águas, será encontrado no céu."
A partir daquele momento, ela sabia que estava envolvida em algo muito maior e mais perigoso do que qualquer história que já lera. A vila à beira do Tejo, até então tranquila, escondia segredos que jamais poderiam ser imaginados. E ela acabara de encontrar a chave para desvendá-los.
Naquela noite, a jovem levou o livro para casa, sentindo uma mistura de excitação e apreensão. Sentou-se à mesa de madeira desgastada em sua sala de estar, iluminada apenas pela fraca luz de uma vela, e começou a folhear as páginas mais uma vez. As palavras escritas naquela língua desconhecida pareciam se mover sob seus olhos, como se o próprio texto estivesse vivo.
Ela tentou decifrar os símbolos, mas sem sucesso. No entanto, algo peculiar começou a acontecer. À medida que seus olhos percorriam as linhas indecifráveis, imagens estranhas começaram a se formar em sua mente. Eram visões de um mundo sombrio e distorcido, onde criaturas antigas vagavam por florestas escuras e mares sem fim.
Assustada, fechou o livro com um estalo, sentindo seu coração acelerar. Mas, por mais que tentasse, não conseguia afastar as imagens da mente. Sentia que aquele livro não era um simples objeto perdido; era um portal, uma ligação com algo além do entendimento humano.
Decidida a descobrir mais, ela lembrou-se do velho alfarrabista que morava na vila, um homem recluso que havia viajado pelo mundo colecionando livros raros e manuscritos antigos. Na manhã seguinte, levou o livro até ele, esperando que pudesse ajudar a entender o que havia encontrado.
O alfarrabista, um homem de olhos profundos e barba grisalha, olhou para o livro com uma expressão de surpresa misturada com temor. Ele o pegou com mãos trêmulas e examinou a capa, como se reconhecesse os símbolos gravados ali.
— Onde encontrou isto? — perguntou ele, a voz carregada de inquietação.
Ela contou sobre o parque, sobre como o livro simplesmente apareceu, como se estivesse esperando por ela. O homem permaneceu em silêncio por um longo momento, antes de se levantar e caminhar até uma estante cheia de livros antigos.
— Isto não é um livro comum — começou ele, escolhendo as palavras com cuidado. — Há muito tempo, ouvi histórias sobre um livro perdido que continha segredos de uma civilização antiga. Dizem que este livro era um portal para outro mundo, um mundo habitado por seres que não pertencem a este plano. A frase que encontrou no final... "O que foi perdido nas águas, será encontrado no céu"... é um enigma que ninguém jamais conseguiu decifrar completamente. Mas há rumores... — ele fez uma pausa, olhando diretamente nos olhos dela — ...de que a resposta está ligada a uma antiga lenda da nossa vila, algo que aconteceu há muito tempo, quando o rio e o céu eram um só.
A menção dessa lenda esquecida fez com que o ar na pequena livraria ficasse pesado. Ela sentiu um frio na espinha. O alfarrabista entregou o livro de volta a ela, como se o peso do objeto fosse grande demais para ele carregar.
— Seja cuidadosa — disse ele, a voz quase um sussurro. — Este livro está conectado a coisas que a maioria das pessoas prefere esquecer. Se seguir adiante, não haverá retorno.
Com essas palavras ecoando em sua mente, ela saiu da loja, o coração acelerado e a cabeça cheia de perguntas. O que aquela frase significava? Qual era a ligação da vila com aquele mundo estranho que começava a se desenhar em sua mente?
Enquanto ela caminhava de volta para o parque, o céu começou a escurecer com nuvens pesadas. As águas do Tejo estavam estranhamente calmas, como se aguardassem algo. Sentindo-se atraída para as margens do rio, ela parou e olhou para o céu. As nuvens se moviam rapidamente, formando padrões que se assemelhavam aos símbolos no livro.
E então, ela percebeu: as palavras do enigma não eram apenas uma metáfora. O que estava perdido nas águas do Tejo, talvez, não fosse algo físico. Talvez fosse um segredo, uma verdade esquecida que estava prestes a ser revelada — no céu.
Sentindo uma presença estranha ao seu redor, ela abriu o livro mais uma vez. Agora, as palavras pareciam fazer sentido. Mas antes que pudesse ler mais, uma sombra passou sobre ela. Algo estava emergindo das profundezas do Tejo, e ao mesmo tempo, descendo do céu.
A jovem prendeu a respiração enquanto observava a sombra que se formava sobre o Tejo. As águas, antes calmas, agora giravam lentamente, como se uma força invisível estivesse puxando algo das profundezas. O céu escurecia rapidamente, e uma estranha luminescência começou a emanar das nuvens, lançando um brilho fantasmagórico sobre o rio.
Ela sentiu o ar ao seu redor vibrar, e o livro em suas mãos começou a aquecer, como se estivesse vivo. As páginas se abriram sozinhas, revelando um símbolo que não havia notado antes: um círculo entrelaçado com linhas que formavam um padrão complexo, semelhante ao que as nuvens no céu estavam desenhando.
De repente, uma voz suave e melancólica, como um sussurro distante, ecoou em sua mente. "O ciclo retorna... o portal se abre..."
Sentindo um impulso incontrolável, ela caminhou até a beira da água, onde as ondas suaves pareciam chamá-la. Enquanto se aproximava, algo começou a emergir da correnteza. Era um objeto antigo, enredado em algas e coberto por conchas, mas com um brilho prateado que parecia desafiar o tempo. Ela reconheceu o formato imediatamente: era um espelho.
Mas não um espelho comum. Sua superfície era irregular, como se fosse feita de mercúrio líquido, e refletia não o seu rosto, mas uma paisagem que não pertencia àquele mundo. No reflexo, ela viu um campo vasto, sob um céu estrelado, com uma lua gigante que lançava uma luz prateada sobre uma cidade ao longe. A cidade não era da Terra, e algo nela a fazia lembrar dos desenhos estranhos nas páginas do livro.
Ela estendeu a mão para tocar o espelho, e no instante em que seus dedos tocaram a superfície fria, sentiu como se estivesse sendo puxada por uma corrente invisível. O espelho se expandiu, envolvendo-a em uma névoa prateada. O parque, o rio, e o céu noturno desapareceram, dando lugar ao mundo que ela vira no reflexo.
Quando a névoa dissipou, ela se encontrou em uma colina sob a lua gigante. O ar estava frio, e um silêncio profundo envolvia a paisagem, interrompido apenas pelo som distante de uma música melancólica que parecia vir da cidade à sua frente. Era um lugar de beleza estranha, mas com uma sensação inquietante, como se estivesse preso entre dois mundos.
Ela começou a caminhar em direção à cidade, seguindo a melodia que a guiava. À medida que se aproximava, percebeu que as ruas estavam vazias, e as casas, feitas de pedra negra e luminosa, pareciam antigas, como se tivessem sido abandonadas há muito tempo. Mas ainda havia sinais de vida: luzes acesas em algumas janelas e sombras que se moviam no interior das casas.
O livro, que ainda carregava, parecia mais pesado a cada passo, como se a cidade estivesse drenando sua energia. Ela finalmente chegou a uma grande praça, no centro da cidade, onde uma enorme torre se erguia, tocando o céu estrelado. Na base da torre, uma porta estava entreaberta, deixando escapar a mesma luz prateada que ela vira no espelho.
Sem hesitar, empurrou a porta e entrou. O interior da torre era vasto, com paredes cobertas de símbolos e imagens que pareciam ganhar vida enquanto ela os observava. E no centro, sobre um altar de pedra, estava um objeto familiar: o espelho.
Mas algo estava diferente. Agora, o espelho não refletia mais a paisagem da cidade. Em vez disso, mostrava a vila à beira do Tejo, envolta em sombras, com as águas do rio se agitando violentamente. E ao longe, algo se movia sob as águas, uma criatura colossal que parecia ser feita de pura escuridão, prestes a emergir.
De repente, a música que ela ouvira desde que chegara à cidade parou. O silêncio foi rompido por um sussurro, o mesmo que ouvira antes, mas agora mais alto, vindo de todos os lados: "O ciclo se completa. O portal está aberto. Retorne e feche o ciclo, ou o que foi perdido tomará o que é seu."
Ela compreendeu então. O livro, o espelho, a cidade, eram todos partes de um ciclo que estava prestes a se repetir, a menos que ela encontrasse uma maneira de fechá-lo. E o tempo estava se esgotando. Olhando para o espelho mais uma vez, ela viu a vila sendo tomada por sombras, as águas do Tejo fervendo com uma força antiga que não poderia ser contida por muito mais tempo.
Com o coração acelerado e a mente fervilhando com perguntas e medos, ela sabia que precisava agir rápido. Mas a chave para fechar o ciclo ainda estava oculta, e a única certeza que tinha era que a resposta estava entre o espelho, o livro, e o próprio coração da cidade esquecida.
O peso da responsabilidade caiu sobre seus ombros enquanto ela observava o espelho, sentindo o terror crescer ao ver a criatura emergir das profundezas do Tejo. O sussurro persistente em sua mente, a urgência de fechar o ciclo, e a visão de sua vila prestes a ser consumida por algo indescritível forçaram-na a agir, mesmo que não soubesse como.
Olhando ao redor do salão na base da torre, seus olhos foram atraídos para os símbolos nas paredes. Agora, pareciam mais claros, quase familiares. O livro em suas mãos vibrava levemente, como se respondendo à presença daqueles símbolos. Ela o abriu mais uma vez, e as páginas brilharam com uma luz suave, revelando novos detalhes nos desenhos, como se tivessem sido ativados pelo ambiente da torre.
Ela correu os dedos pelas páginas, percebendo que os símbolos no livro correspondiam aos das paredes, como se fossem uma linguagem secreta, um código que precisava ser decifrado. A última página, onde a frase enigmática havia aparecido, agora continha um novo desenho: um círculo dividido em três partes, com uma estrela brilhando no centro. No topo, um símbolo que representava a água; na base, um que representava o céu; e no meio, um símbolo que parecia um portal.
Enquanto observava o desenho, uma súbita compreensão a atingiu. O ciclo do qual o sussurro falava não era apenas um evento repetitivo; era um equilíbrio entre forças que deveriam estar separadas, mas que estavam prestes a colidir. A água e o céu, o que estava em cima e o que estava embaixo, estavam se aproximando perigosamente, e ela estava no centro disso.
Ela sabia que o espelho era a chave, mas precisava descobrir como usá-lo. Olhou de volta para o espelho sobre o altar, onde as imagens do Tejo continuavam a se agitar, a escuridão tomando conta da vila. Naquele momento, um lampejo de memória surgiu em sua mente: o alfarrabista mencionara que o livro era um portal para outro mundo, e que o espelho, ao refletir esse mundo, poderia abrir um caminho entre os dois. Talvez a resposta estivesse na junção desses elementos.
Decidida, aproximou-se do espelho e, hesitante, tocou sua superfície uma vez mais. O espelho reagiu, pulsando com energia, e a visão do Tejo se expandiu, até cobrir toda a sala. Era como se ela estivesse flutuando sobre as águas, vendo a vila de cima, como um deus observando seu reino.
Ela concentrou-se na última página do livro, nas palavras e símbolos ali gravados. Sentiu uma força crescer dentro de si, uma conexão profunda com o livro, com o espelho e com a própria torre. Como se estivesse em um transe, começou a recitar as palavras que surgiam em sua mente, palavras que não entendia, mas que fluíam de seus lábios como se as soubesse desde sempre.
Conforme recitava, as águas no espelho começaram a se acalmar, e o brilho prateado da lua no céu acima se intensificou, refletindo-se nas águas, formando uma ponte de luz entre os dois mundos. A criatura nas profundezas do Tejo, que antes parecia prestes a emergir, começou a se retrair, puxada pela luz que agora emanava do espelho.
Ela sentiu uma resistência, como se a força escura estivesse lutando para romper o equilíbrio, mas continuou, canalizando toda sua vontade para manter a conexão. O símbolo do portal na página do livro brilhou intensamente, e uma nova palavra surgiu na superfície da página, uma palavra que soava como um comando final.
— "Encerramento!" — gritou, a palavra reverberando pelo salão.
Com esse grito, a conexão entre o espelho, o livro e a torre se fortaleceu. O espelho brilhou com uma luz ofuscante, e o portal entre os mundos começou a se fechar. A criatura, agora visível apenas como uma sombra distante, foi sugada de volta para as profundezas, enquanto a lua no céu desaparecia lentamente, substituída pelo brilho do amanhecer.
O salão escureceu, e o espelho voltou ao seu estado original, refletindo apenas o rosto dela, pálido e exausto. Sentiu as forças a abandonarem, e ajoelhou-se ao lado do altar, respirando com dificuldade. Mas sabia que havia feito o necessário: o ciclo estava fechado, o portal, selado.
A vila à beira do Tejo estava segura, por enquanto. Mas ela também sabia que o equilíbrio era frágil, e que o ciclo poderia tentar reabrir-se novamente. O livro ainda estava em suas mãos, silencioso, mas carregado de poder. Agora, ela era sua guardiã, e a responsabilidade de proteger o mundo das forças que ele continha recaía sobre ela.
Com o primeiro raio de sol iluminando o salão da torre, ela se levantou. Sabia que tinha muito a aprender e muitas perguntas ainda sem resposta. Mas por ora, estava em paz, sabendo que havia cumprido seu papel. E com o livro sob o braço, começou a caminhar para fora da torre, pronta para retornar à vila, onde o rio Tejo corria novamente em silêncio, como se nada tivesse acontecido.