Senhor dos Passos.

Eu vou à Procissão do Senhor dos Passos.

Não vou apenas porque é tradição, nem porque se espera que eu vá. Vou porque há em mim uma necessidade antiga, funda, de reencontro — com a fé, com o tempo, com a memória dos meus e com a minha própria essência. Vou como mulher inteira, feita de dúvidas e de crenças, de fragilidades e de esperanças, com o coração aberto àquilo que não se vê, mas que se sente com a força de uma verdade íntima. Vou como quem regressa a casa depois de uma longa viagem por dentro de si mesma.

A Procissão do Senhor dos Passos, que tem início às 16h30, é muito mais do que um rito religioso. É um espelho da alma humana em marcha. É uma celebração do sofrimento que redime, da entrega que salva, da fé que resiste. A figura do Senhor dos Passos — Jesus Cristo curvado sob o peso da cruz — é talvez a mais profundamente humana de todas as representações divinas. Nele, não vemos apenas Deus, vemos um homem a cair, a levantar-se, a continuar, a perdoar. Nele, vemos a imagem de todos os nossos cansaços, das dores caladas, das perdas irreparáveis, dos silêncios que ninguém escuta, dos gritos que nunca chegaram a ser pronunciados.

E por isso eu vou. Porque na lentidão da procissão, entre os cânticos antigos que se elevam no ar como preces suspensas, encontro espaço para recordar os meus mortos, os meus amores, os momentos em que me senti quebrada, e também aqueles em que fui surpreendida pela graça. Vou por mim e por tantos que já não podem ir. Levo no coração nomes, lembranças, promessas. Carrego comigo a infância ao colo, quando ia com o meu pai pela mão, sentindo o cheiro do incenso e o peso misterioso da fé. Levo os dias de dúvida, os anos de afastamento, e levo também o regresso — sempre possível, sempre acolhido.

Durante a procissão, não somos apenas espectadores. Somos parte de algo maior, de uma corrente silenciosa de humanidade em busca de sentido. O toque dos sinos, o ranger das andas, as lágrimas discretas de quem caminha ao meu lado — tudo isso forma um tecido invisível que nos liga, que nos sustenta. Não é raro ver alguém ajoelhar-se à passagem do Senhor dos Passos, ou ver olhos marejados, mãos trémulas, gestos pequenos de uma devoção que é imensa.

E se hoje escrevo estas palavras, é porque quero deixar mais do que um testemunho — quero deixar um convite. Um convite a quem lê, para que vá também à procissão da sua terra, se assim o coração o chamar. Vá por fé, por memória, por tradição, por curiosidade, por sede de silêncio. Vá por um motivo que talvez nem saiba nomear. Porque ali, nesse percurso lento, pode encontrar-se consigo mesmo, ou com Deus, ou com uma paz que já julgava esquecida.

Não importa se acredita muito ou pouco, se tem certezas ou apenas intuições. A procissão não exige fé perfeita — ela acolhe corações imperfeitos. Ela é caminho, é metáfora da vida, é oportunidade de pausa e contemplação. É presença.

Se o seu coração desejar, vá. Sozinho, em família, em silêncio. Leve os seus passos com humildade, e talvez descubra que há, na dor representada ali, um amor mais profundo do que qualquer explicação. E que nesse amor há espaço para si, tal como é — inteiro, falível, humano, bela na sua fragilidade.

Eu vou. E, se quiser, vá também. Porque há caminhos que só se compreendem quando se percorrem. E este é um deles.

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