Morri...

 Tenho morrido. Inúmeras vezes. Sem flores, sem velório, sem dramatismos públicos. Morri em filas de espera por mensagens que nunca vieram. Morri em “depois falamos” que nunca se concretizaram. Morri em jantares em que me sentei inteira e levantei-me em cacos, por perceber que estava a partilhar a mesa com alguém que confundia presença com ausência polida. E morri, tantas vezes, de tédio — porque há gente que é tão vazia que falar com eles devia contar como sessão de espiritismo.

Mas, claro, não fui enterrada. Fui reciclada. Renascer é uma arte. Aliás, é a única arte que realmente domino. Já não me comovo com finais. Estou emocionalmente climatizada para catástrofes — as minhas e as alheias. Descobri, entre um colapso e outro, que a dor depura. É como um bom vinho: melhora se souberes esperar e beber com o copo certo. Ou atira-te para o chão, se for barato e mal escolhido. Aprendi a distinguir ambos.

Cada vez que me despedacei, reconstrui-me com mais ironia, mais filtro solar emocional e uma paleta de sarcasmo que faria corar qualquer monja tibetana. Porque, sim, é preciso uma certa dose de humor negro para não enlouquecer neste mundo onde há gente que acredita sinceramente que maturidade emocional é mandar indirectas com citações do Instagram.

Fingir-me de sol? Já não preciso. Sou sol. E nem sempre sou o sol simpático de manhãs de primavera. Às vezes sou o sol do meio-dia num deserto emocional: ilumino, sim — mas também queimo. E não peço desculpa. Que aprendam a usar protector. Cegar a lua? Com gosto. Se for para brilhar, que seja com luz própria. Refletir o quê? O reflexo dos outros nunca me serviu — não sei se já reparaste, mas os espelhos raramente são neutros.

Beber o mar? Já o fiz com gelo e uma rodela de sarcasmo. Deixei que me afogasse até aprender a respirar por guelras. Engoli ondas de desilusão e ainda assim digeri tudo com um certo ar de “não é desta que me engasgo”. Já há muito que deixei de fazer drama com quem não sabe nadar em profundidade emocional. Não é minha função ensinar natação a quem só sabe chapinhar na superfície das suas próprias inseguranças.

E, sim, perdoo. Perdoo com elegância, como quem oferece um copo de água com limão a alguém que claramente não digere maturidade. Não perdoo por esquecimento ou porque sou santa — longe disso. Perdoo porque não tenho espaço na bagagem para carregar cadáveres emocionais. Desejo o melhor, sinceramente. Mas não me dou ao trabalho de acompanhar o caminho. O meu GPS já não está programado para voltar a lugares onde fui mal recebida.

Se me falarem, serei gentil. Respeitosa. Firme. Porque empatia não se confunde com amnésia. A minha voz é doce, mas a minha memória é fotográfica. Posso sorrir — e sorrio. Mas não volto. O meu perdão é sem retorno, sem fita, sem assinatura embaixo. É um “vai em paz” selado com classe. E uma porta que se fecha com mola.

O que ficou para trás… ficou mesmo. Havia ali muito barulho e pouco conteúdo. Não levo ofensa, só lições. Se alguma vez fui ingénua, hoje sou selectiva. Se alguma vez fui boazinha, hoje sou justa. Não me endureci — afinei. Não me tornei cínica — tornei-me lúcida. E há uma diferença abismal entre ambas.

Já não me deixo partir por qualquer tropeço. Mas se acontecer — e, claro, acontecerá, porque a vida tem um certo fetiche por testar os fortes — sei exactamente onde me colar. Já tenho o mapa das minhas falhas, o inventário das minhas forças e uma cola interior feita de lucidez, bom gosto e um certo desdém por sentimentalismo barato.

Hoje sou feliz. De verdade. Não daquela felicidade performativa de quem posta “gratidão” entre dois colapsos. Sou feliz com uma paz que não grita, com uma alegria que não precisa de palco. Estou inteira. E isso é raro. Estou tranquila. E isso é perigoso para quem só sabe lidar com mulheres que gritam por amor. Eu não grito. Eu escolho.

E, se um dia cair de novo — porque sou humana, e tropeçar faz parte — cairei com estilo, com humor, e com a certeza de que não sou feita de vidro, mas de fogo. Voltar a colar-me? Talvez. Mas já sabes: cada vez que me reconstruo, fico mais bonita, mais afiada, mais eu.

E que fique bem claro: este texto não é um lamento. Não estou em crise, não estou ferida, não estou a enviar indirectas. Estou — finalmente — em mim. E é um lugar confortável, quente, imenso. Quem quiser, que venha por bem. Quem não souber estar — que não se dê ao trabalho.

Já fui cinza. Agora sou sol. E lua. E estrela cadente, se me apetecer.

E se tiver de morrer outra vez, que seja de tanto rir.

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