História – “A Senhora do Poço”

 Era uma vez um tempo sem tempo, onde o mundo ainda guardava os contornos suaves entre o visível e o invisível, entre o que se dizia e o que se escondia. Nesse tempo esquecido pelos relógios, caminhavam juntas duas figuras distintas, embora à vista de muitos parecessem irmãs: a Verdade e a Mentira. Uma vestia-se de luz serena, olhos profundos como o céu de outono, pés descalços que não temiam o caminho. A outra, envolta em véus de prata falsa, andava leve, sorriso encantador, palavras doces como mel... mas que deixavam um travo amargo ao fundo da alma.

A Mentira, astuta e paciente, aproximou-se da Verdade com voz suave e disse:

— Vem comigo ao Poço Antigo. A água está quente, o silêncio é manso e não há olhares. Por um instante, sejamos apenas o que somos.

A Verdade, que há muito caminhava entre multidões que a julgavam, caluniavam ou ignoravam, sentiu no convite um apelo à pausa, ao reencontro consigo. Deixou o manto dourado à beira do poço e mergulhou. A água era limpa, envolvente, como o ventre de uma mãe. E por um momento, ambas estavam nuas. Sem máscaras. Sem defesas.

Foi então que a Mentira saiu sorrateira, tomou o manto da Verdade, ajeitou-se, e desapareceu no mundo. A Verdade, ao emergir, encontrou-se só e exposta. Buscou o manto, mas este já não estava. Tentou cobrir-se com folhas, com pudor e dignidade. Mas ao pôr o pé fora do poço, o mundo recuou. Taparam os olhos. Apontaram-na com escárnio. Chamaram-na indecente, fanática, radical. A Verdade, em silêncio, viu-se expulsa. E compreendeu: o mundo já não queria vê-la nua. Apreciavam-na quando bem vestida, agradável, moldada. E agora, a Mentira, trajando o seu manto, passeava nas praças, nos púlpitos, nas redes, nas manchetes... e era aplaudida.

Derrotada, a Verdade voltou ao fundo do poço. Jurou só regressar quando o mundo desejasse vê-la como ela é, com coragem para a encarar sem medo, sem véus, sem conveniências. E até hoje, dizem os sábios, ela ainda espera.


Reflexão – “A Mentira Vestida de Verdade: Um Espelho para o Nosso Tempo”

A história é simples. A Mentira convida a Verdade a banhar-se num poço. Quando a Verdade mergulha, a Mentira rouba-lhe as vestes e foge. A Verdade, nua, quando sai à superfície, é rejeitada. E assim, a Mentira anda pelo mundo disfarçada de Verdade, enquanto a própria Verdade se esconde, ferida, no fundo do poço. É um conto breve — mas dentro dele cabe o drama moral, espiritual, social e existencial de toda uma civilização.

Vivemos num tempo em que quase tudo pode ser manipulado: a imagem, o discurso, a memória, os dados. Mas a mentira de hoje já não precisa ser grosseira — ela sofisticou-se. Aprende a linguagem da verdade. Usa os seus trajes. Adapta-se ao público. E é justamente isso que a torna mais perigosa: a mentira moderna não se impõe pela força, mas pelo consentimento colectivo. E como se espalha? Pelas redes. Pela política. Pela mídia. Pela religião. Pela consciência humana.

Redes Sociais: o altar da ilusão

As redes são o lugar simbólico onde a mentira se tornou estética. Tudo é aparência. A imagem vale mais do que a substância. A performance substitui a presença. Criámos avatares de nós mesmos — versões editadas, filtradas, agradáveis, que alimentam o desejo de ser vistos, aceites, validados. E nessa busca de aprovação, mentimos. Mas com estilo, com hashtags, com luz perfeita.

A Verdade, nessa lógica, é incômoda. Porque é imperfeita. Porque mostra o que não vende: vulnerabilidade, contradição, silêncio. Ela não se adapta ao algoritmo. Por isso é ignorada, invisibilizada. A Mentira, por outro lado, é flexível. Reinventa-se. Torna-se influente. Usa discursos de empatia, de justiça, de autenticidade — tudo, claro, com um toque de autopromoção. Não há espaço para o poço — só para a vitrine.

Mídia: a manipulação disfarçada de neutralidade

Se as redes são o palco, os meios de comunicação são o bastidor da narrativa. Hoje, poucos buscam informar — quase todos moldam a percepção. Os factos são moldados como argila: escolhe-se o que mostrar, como mostrar, quando mostrar. O silêncio é, muitas vezes, mais revelador do que a manchete. E a Verdade, essa, aparece apenas quando é conveniente, quando serve o enredo.

A Mentira vestida de Verdade fala com voz calma, jornalística, académica. Não grita. Convence. Repete-se até parecer óbvia. E o público, cansado de pensar, aceita. A Verdade nua exige tempo, discernimento, estudo — mas isso já não cabe na pressa dos dias. A informação tornou-se consumo. E a verdade, mercadoria.

Política: a mentira institucionalizada

Na política, a mentira deixou de ser desvio — tornou-se método. Promete-se o que não se pretende cumprir. Aponta-se o erro dos outros para esconder os próprios. A imagem pública torna-se mais importante do que o bem comum. O político que ousa dizer a verdade — por exemplo, que certos direitos implicam deveres, que não há soluções fáceis, que o bem exige sacrifício — é rapidamente descartado. Porque a verdade, em política, não elege.

A mentira veste-se de causas nobres. Apresenta-se como progresso, inclusão, liberdade. Mas no fundo é cálculo, estratégia, ambição. A mentira que governa é mais perigosa do que a mentira pessoal — porque afecta multidões. E quando o povo se habitua à mentira, torna-se cúmplice. Afinal, é mais fácil culpar os outros do que encarar a própria responsabilidade cívica.

Religião: a Verdade instrumentalizada

Mas talvez o mais escandaloso seja isto: até a religião pode vestir a mentira. E fá-lo muitas vezes, sem pudor. A fé — que deveria ser encontro com o Mistério, com o Deus que é Verdade e Amor — torna-se muitas vezes um instrumento: de poder, de manipulação, de vaidade espiritual.

Há pregadores que falam em nome de Deus mas servem a si próprios. Que usam a linguagem da verdade, mas para condenar, excluir, dividir. Há comunidades onde o brilho do ritual esconde o vazio da caridade. Onde a ortodoxia doutrinal não se traduz em compaixão. A mentira entra no templo não como oposição à fé, mas como distorção da fé. E muitos a seguem, não por malícia, mas por medo, por tradição, por falta de discernimento.

A Verdade de Cristo — que é pobre, crucificada, amorosa — torna-se incómoda. Troca-se o escândalo da cruz pelo conforto das certezas. Troca-se o seguimento por slogans. Troca-se a entrega pela identidade. E a Verdade, nua, silenciosa, permanece no fundo do poço: à espera de quem a deseje por si mesma — não como arma, não como rótulo, mas como caminho.

Vida interior: o palco final

E chegamos ao lugar mais íntimo e mais decisivo: a consciência. É aqui que a mentira começa e termina. Porque podemos mentir ao mundo — mas o maior perigo é quando mentimos a nós mesmos.

Vivemos em fuga constante de nós. Racionalizamos os nossos erros. Construímos narrativas para não mudar. Enchemos o vazio com distrações, com ruído, com ocupações. Mas em algum momento, na solidão, na dor, no silêncio — a Verdade sussurra. E então, o que fazemos? Fugimos ou escutamos?

A verdade interior exige confronto: com as feridas, com os limites, com o orgulho. É um caminho de despojo, como o da Verdade nua. Mas também é um caminho de renascimento. Porque só na verdade há transformação. Só na verdade há liberdade. E é isso que o Evangelho repete: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará." (Jo 8,32)

A mentira dentro de nós pode vestir mil roupas: a da vaidade, do medo, da comparação, do orgulho espiritual. Mas nenhuma dessas vestes cura. Só a nudez da verdade — vestida com misericórdia — pode regenerar o coração humano.

No fim, uma escolha

A Verdade continua no poço. Não desapareceu. Apenas se retirou — à espera de quem tenha coragem de descer. Talvez sejamos poucos, mas seremos reais. E o mundo só será salvo por aquilo que for real. Num tempo em que a mentira se apresenta com tanto brilho, escolher a Verdade é um ato de fé, de inteligência e de resistência.

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