O Diário da Mãe
Quando os filhos nos devolvem quem somos
Uma crónica sobre escuta, crescimento e o poder da palavra partilhada.
Às vezes, os momentos mais transformadores não se anunciam com fanfarras. Acontecem assim, entre o tilintar dos talheres, as conversas sobre o trivial e os risos que ecoam de fundo como banda sonora de um almoço em família. Foi num desses almoços — acolhidos com carinho por uma matriarca de coração generoso — que a vida resolveu surpreender-me. Ou talvez não tenha sido a vida. Talvez tenha sido o meu filho, ou Deus.
Estávamos à mesa, em plena partilha de histórias e impressões, quando uma situação alheia se tornou tema. Uma dessas dinâmicas humanas que, por mais banais que pareçam, reflectem a complexidade da nossa dificuldade em comunicar com verdade. Eu, com alguma franqueza — e talvez impaciência — comentei que as duas pessoas envolvidas estavam a ser “estúpidas”. Não por maldade. Mas por não serem transparentes, por se refugiarem no silêncio, em vez de enfrentarem o que sentem. Por não dialogarem.
Foi então que o meu filho, com olhos vivos e presença inteira, disparou:
— Porquê?
E disse-o com aquela autoridade desarmante que só a curiosidade sincera confere. Queria que eu explicasse. Fundamentasse. Não se contenta com respostas automáticas. E eu expliquei: que não estavam a ser honestos um com o outro, que a ausência de verdade gera distância, e que, sem diálogo, ninguém constrói pontes.
Foi aí que ele, com a calma dos sábios e a clareza de quem já viveu muito em pouco tempo, respondeu:
— Mãe, se o outro não quer resolver, cala-se, mente, afasta-se… não quer resolver nada. Nesse momento, devemos deixar ir. E esquecer.
O silêncio que se seguiu não foi de espanto — foi de reverência. Aquelas palavras, ditas com tamanha convicção e serenidade, fizeram eco nos adultos presentes. Foi como se todos, de repente, o escutassem como se escuta alguém muito mais velho. E naquele instante, não era apenas o meu filho. Era consciência pura, espelhada num corpo pequeno.
Eu acenei, em concordância, mas com uma nuance que precisei acrescentar:
— Sim, tens razão. Mas não concordo com o esquecer. Temos de aprender. De enfrentar. De organizar o que sentimos. De superar.
Ele ouviu-me, pensativo, e perguntou de forma quase sussurrada:
— Foi por isso que fizemos terapia?
E foi como se alguém abrisse, ali mesmo, as páginas do nosso livro mais íntimo. O que não se lê em público. O que se vive. O que se escreve com lágrimas, com silêncios, com coragem.
— Sim, foi por isso.
Porque tivemos a coragem de admitir que havia coisas por curar. Porque fizemos do cuidado mútuo um caminho partilhado. E porque eu acredito que não há herança mais bonita do que ensinar um filho a sentir… e a expressar.
Foi nesse momento que ele, sem hesitar, voltou-se para a nossa anfitriã, a matriarca que tão generosamente nos recebia, e com um brilho nos olhos disse:
— É por isso que a minha mãe escreve. Ela tem um blog. Tem milhares e milhares de visualizações. Escreve muito bem. Eu gosto. Ela tem-me ensinado a escrever. É o "Diário da Mãe", quase. O completo está em casa, escrito à mão. Eu tenho muito orgulho na minha mãe. A mãe escreve como terapia, também para lembrar. E um dia, vão ler e recordar quem eu sou e quem minha mãe é.
Não pude falar de imediato. Só sorri, com o coração apertado de amor. Porque naquele momento, o meu filho entendeu tudo: que escrever é resistir ao esquecimento. É salvar a memória do que somos, e do que sentimos, antes que o tempo nos leve o que não registámos. Escrevo por mim, por ele, por nós. Para lembrar o caminho, para guardar as conversas que nos moldam, para deixar-lhe um mapa de quem fui, e de quem ele também se tornou.
A verdade é que os filhos ouvem. Observam. Aprendem. E, às vezes, retribuem. Com palavras que nos devolvem a nós mesmas. E com a certeza de que, mesmo sem pedir, já plantámos algo bonito no coração deles.
E isso… isso é tudo.
Escrito com amor,
A Mãe, TeceHistorias.