Confesso...

Confissão sem sacramento – ou como fiz as pazes com a mulher que fui em 2023

As confissões foram ontem. Não houve fila na igreja,mas houve gente ajoelhada, silêncios pesados e talvez até algumas lágrimas discretas. Eu não fui. Não por arrogância espiritual — até porque pecadora me sei — mas porque entendi que o tipo de confissão que eu precisava fazer não pedia sacramento. Pedia consciência. Palavra. Memória. E, acima de tudo, honestidade.

É fácil recitar fórmulas de arrependimento. Difícil é encarar de frente a versão de nós mesmas que deixámos para trás, especialmente quando essa versão nos envergonha mas principalmente nos comove em proporções semelhantes. Por isso, escrevi. Não para absolver-me, mas para compreender. Para fazer as pazes com a mulher que fui nos últimos meses, em 2023 — e deixá-la, finalmente, repousar.

Segue-se o que não confessei num confessionário, mas confessei a mim mesma — e, talvez, a quem souber ler.

Ontem foi dia de confissões. Eu não fui. Não porque não tenha pecados — por favor, poupem-me à santidade — mas porque os meus são veniais, pequenos, quase domésticos. São os pecados de quem fala demais quando devia calar, de quem sente demais e age de menos, quem confiou demais quando não devia. E nem sequer me arrependo. Não agora. Talvez nunca me arrependa, sinceramente. Os pecados que cometi nasceram da lucidez, não da maldade. E isso, para mim, já é absolvição.

Falo pouco. Escuto mais. Mas o que disse — sobre pessoas, sobre situações — não me envergonha. Disse o que vi, o que senti, e talvez tenha sido dura. Talvez injusta. Talvez tenha reduzido seres humanos a caricaturas dos seus defeitos, das suas atitudes e acções. Mas, no meio da dor, quem é que consegue manter a proporção?

Se estivesse baptizada no ano passado, teria ido confessar-me. Não pelos actos — que não os houve — mas pelos pensamentos. Porque nos últimos meses de 2023,  foram meses emocionalmente sujos. Um pântano. A cada injustiça, acumulava-se em mim uma lama de sentimentos que ninguém devia ser forçado a engolir. E eu engoli. Engoli raiva, rancor, ódio. Engoli a humilhação de ser tratada como menos por quem devia saber mais. Engoli palavras que teriam destruído. Porque, no fim, o que me salvou foi a empatia. Essa maldita bússola que insiste em apontar para a humanidade alheia, mesmo quando tudo em mim pedia vingança.

Sim, tive pensamentos maus. Tive fantasias de confronto. Tive momentos em que me imaginei a dizer tudo — tudo — com a crueldade refinada de quem foi empurrada para o limite. Mas nunca passei à acção. Nunca precisei. Porque as palavras, quando bem usadas, fazem mais estragos do que qualquer acto, por isso não as usei.

E falei, sim. Falei dessa pessoa. Falei dos defeitos, das atitudes inumanas, da frieza disfarçada de liderança, da manipulação emocional, falei da falsidade, dissimulação, da falta de profissionalismo, falei da traição. Falei como quem sangra pela boca — e sangrei. Mas hoje, reconheço: também fui injusta. Não pelas críticas — essas eram legítimas — mas pela visão unidimensional que adoptei. Vi apenas o lado sombrio. E ninguém é só sombra. Nem sequer ela.

Falei porque precisava de não rebentar. Escrevi porque precisava de me levantar. Porque precisava, acima de tudo, de entender como alguém em quem confiei, defendi e tratei como amiga foi capaz de dizer o que disse e fazer o que fez — não apenas a mim, mas à minha família. E, acima de tudo, a uma criança. Uma criança que a admirava, que gostava dela com a pureza e intensidade de quem gosta como se fosse família. Como foi possível? A resposta não veio logo. Veio primeiro a culpa. Culpei-me. Julguei que talvez tivesse sido ingénua, talvez cega. E sim, pequei — com palavras, com pensamentos e com omissões. Mas nunca a difamei. Nunca fui procurar quem a conhecesse para a diminuir ou vilipendiar a sua dignidade. Não porque não tivesse razões, mas porque me recusei a rasgar a dignidade de alguém, mesmo quando a minha tinha sido pisada.

Não queria acreditar que tinha sido enganada pelo meu próprio julgamento, pelos meus próprios olhos. Caí. E levantei-me. E nessa queda, encontrei algo inesperado. Li, nas estações da Via Sacra das Jornadas da Juventude, uma frase que me ficou cravada: “Eu caí contigo para me levantar contigo. Vamos juntos.” Era Cristo a falar. E era comigo que falava. Escrevo esta confissão para mim. Por mim. A cicatriz ficou. A lição também. Quero acreditar em certas palavras que me foram ditas por essa pessoa. Mas duvido. E a dúvida já não me consome. Porque já não há lama. Porque, apesar de tudo, sempre desejarei o melhor.

Hoje, não tenho mais nada para dizer. Porque já foi dito. Porque já foi sentido, não existe palavras para descrever como foi sentido. Porque, finalmente, foi encerrado. A pessoa em questão — essa entidade que um dia admirei, ou talvez tenha apenas projectado — recebeu o que tinha de receber: um retrato fiel, duro, mas verdadeiro. Falei com ela. Retratei-me. Não para limpar a minha consciência — ela já estava limpa — mas para deixar claro que não carrego fardos que não são meus. 

E agora posso dizer isto, com firmeza e sem amargura: não preciso justificar mais nada. Não preciso explicar-me, defender-me, repetir histórias. Está feito. Está dito. Está arrumado.

Admito — com a frieza adulta que só vem depois de muita dor — que em tempos admirei essa pessoa. Ou personagem. Gostava imenso de falar com ela e da sua companhia, gostava de partilhar, mas principalmente gostava de a escutar. Ainda hoje não sei se era genuína ou apenas bem ensaiada. Mas sei que tinha qualidades. Ainda tem. Não é só defeitos. E por mais que me tenha ferido, também me ensinou. Sobre os outros. E sobre mim.

Agora seguimos. Ela lá, eu cá. Em paz. Sem teatro. Sem rancor. Sem dívida. 

E se um dia ela cair, por mais longe que esteja da minha vida, sei que, se me cruzasse com essa queda, não viraria a cara. Porque apesar de tudo — de tudo — ficou a consideração. Não pela personagem, não pelo que foi dito ou feito, mas pela humanidade que partilhámos antes da queda, num passado longínquo.

E isso, mesmo que em silêncio, permanece.

Sim, permanece, apesar de tudo se cair estendo minha mão, sim apesar de tudo desejo o melhor, sim apesar de tudo perdoei a ela e a mim. Coloco a frase que me tocou profundamente. 

Caio contigo para levantar -me Contigo.

Vamos juntos. 

Uma metáfora, uma realidade. 


Nota:

Esta é a segunda vez que escrevo que está perdoado, é passado e já não dói. Se continuar vou fazer um livro com cartas abertas sobre perdão, aceitação e empatia. Não desejo mal só tudo de bom.

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