Quando a Fé Floresce num Gesto
Ontem, num daqueles fins de tarde húmidos, em que a vila parece sussurrar mais do que falar, fui entregar o ramo benzido àquela mulher que me conhece desde a juventude. Já fomos mais próximas, partilhámos cumplicidades, confidências, silêncios. Hoje, restam o carinho, o respeito e essa estranha intimidade que persiste no tempo mesmo quando os dias não se cruzam.
Ela viu-me chegar ao café com o ramo na mão e sorriu com uma luz nos olhos que não precisa de explicação. “Eu sabia que não ias esquecer, mas já estava a começar a duvidar”, disse, entre a ternura e o alívio. Três dias sem me verem bastaram para plantar incerteza. Mas ali estava eu, com o ramo simples, trazido da Missa do Domingo de Ramos — não um objeto, mas um gesto. E o gesto tocou-a.
Ela não vai à igreja. Não conhece profundamente a Escritura nem os ritos da liturgia. Mas o seu coração, naquele momento, reconheceu algo maior do que as palavras poderiam dizer. E isso bastou para abrir a conversa. “Vai haver procissão do Senhor Morto?”, perguntou. Sorri. “Vai, sim.” E então, com a doçura de quem quer saber se é bem-vinda num lugar sagrado, lançou: “Porque não tentas fazer com que eu vá à igreja? Não me queres lá?”
Respirei fundo. A morrinha continuava a cair, fina, constante, e a noite já abraçava a cidade com a sua melancolia. Sentei-me com ela, e falei com a honestidade de quem não precisa de convencer.
“Minha querida, não se trata de querer ou não querer. Eu não te vou manipular com discursos ensaiados nem te oferecer promessas. A fé não se impõe — desperta-se. Tu tens de querer ir. Tens de sentir. Ir à igreja não é para obter bênçãos materiais ou soluções rápidas. As bênçãos de Deus são maiores do que tudo o que é terreno. Não se medem em dinheiro, saúde ou sucesso — medem-se em paz interior, em clareza de consciência, em amor que transforma.”
“Quando se entra numa igreja com verdade, não se vai buscar algo — vai-se oferecer o coração. Vai-se procurar tornar-se melhor: mais paciente, mais humilde, mais misericordiosa. Vai-se aceitar que somos imperfeitas, e que mesmo assim somos chamadas a viver com autenticidade e compaixão.”
Ela escutava com atenção. O silêncio entre nós já não era vazio — era terreno fértil. Continuei:
“Mas cuidado com o que se encontra por aí. Hoje, muitos confundem fé com espetáculo. E há uma diferença profunda entre o púlpito e o ambão. No púlpito, muitas vezes, fala-se para impressionar. Transformou-se em palco de discursos motivacionais disfarçados de espiritualidade, onde se troca a verdade por promessas de bênçãos em forma de recompensa. Fala-se de sucesso, de cura instantânea, de conquistas materiais — como se Deus fosse um balcão de favores.”
“Mas o ambão — o verdadeiro ambão — é diferente. É o lugar onde se proclama a Palavra. Não há ali lugar para teatralidade nem para manipulação emocional. Ali não se vendem respostas — semeiam-se perguntas. O que se lê no ambão não é um guião persuasivo, é o Evangelho, com a sua crueza, beleza e exigência. É ali que a fé se encontra com a verdade, e não com a ilusão.”
Ela permaneceu em silêncio durante um tempo. E depois, simplesmente, disse:
“Eu vou à procissão. Porque quero ir. Porque sinto, no meu coração, que devo ir.”
Disse-lhe a hora e o dia. Ela sorriu. E eu soube que Deus já lá estava — não na igreja ainda, mas na intenção. No gesto. No desejo de ir.
A fé não se força, nem se impõe. Mas pode florescer — e às vezes, tudo começa com um ramo, uma conversa, e um coração disposto.