Questionário.

 Hoje respondi a um questionário. Não daqueles banais, automáticos, de múltipla escolha ou frases feitas.

Foi um inquérito íntimo, extenso, exaustivo — daquelas auscultações que nos obrigam a olhar para dentro com os olhos bem abertos, sem filtro, sem fuga, sem desculpa. Tocava em tudo: amor, família, feridas antigas, decisões, fracassos, silêncios herdados e criados. Uma espécie de raio-X da alma. Quase clínico.

Mas hoje, partilho apenas uma secção. Só uma. A das perguntas sobre amizade.

Não porque tenha sido a mais difícil, nem sequer a mais dolorosa — mas talvez a mais reveladora. Porque ao falar dos outros, falei de mim. Ao descrever o que me deram ou tiraram, revelei o que tolerei, o que consenti, o que permiti por medo, por carinho, por cansaço ou, simplesmente, por não saber como fazer diferente.

Respondi com uma lucidez que surpreenderia quem me julgasse quebrada. Não houve raiva nas palavras, nem ironia amarga. Apenas a precisão de quem já atravessou demasiado para continuar a fingir que não sabe. Fui, de certo modo, terapeuta de mim mesma — fria na análise, quente no coração. Compreensiva, mas não condescendente.

No final, perguntaram-me como consegui manter esta estabilidade — emocional, mental, racional — depois de tudo o que vivi. Como é que não me tornei cínica. Como é que ainda acredito. Sorri. A resposta, essa… talvez fique para outro dia.

Hoje, só partilho aquilo que se pode partilhar sem legendas: as perguntas e as minhas respostas sobre a amizade. Talvez te encontres em alguma. Talvez te percas noutras. Mas se leres até ao fim, talvez percebas que a amizade, quando nos cura, nunca é apenas sobre o outro — é também sobre quem aprendemos a ser por causa dela.




1. Quantas amizades manténs por afeto e quantas por inércia?

Confesso que, por vezes, o afeto e a inércia andam de mãos dadas. Não sei se se poderia falar de inércia, mas há amizades que mantemos mais pelo medo de perder do que pela real necessidade de as cultivar. Mantemos os laços não porque nos fazem crescer, mas porque, de certa forma, já fazem parte da nossa rotina, da nossa identidade. Uma parte de mim sabe que alguns desses laços já não me servem — mas a outra parte ainda teme o vazio de os cortar.




2. Se fosses hoje o teu pior dia, quem ficava ao teu lado sem pedir explicações?

Tenho poucos assim, os que ficam mesmo quando não há palavras. Mas tenho-os. Alguns amigos sabem que, nos meus piores dias, não preciso de conselhos nem de soluções — preciso de presença. Há quem me olhe nos olhos e saiba que, nesse momento, o silêncio é o melhor remédio. Esses são os que importam. E embora poucos, reconheço-os e abraço-os com a gratidão que merecem, mesmo sem lhes dizer.




3. Quantas das tuas conversas são verdadeiras — e quantas são apenas gestos de sobrevivência social?

Às vezes, as palavras saem sem peso. Digo o que se espera, respondo o que se quer ouvir, cumprimento com um sorriso ensaiado. Mas a verdade é que, raras são as conversas em que me entrego sem reservas. Quando o faço, sei que estou a partilhar algo valioso, algo que não se pode reciclar. E isso é o que mais importa: quando falo de verdade, quem está à minha frente percebe e não precisa de mais. As outras, as superficiais, são apenas uma forma de navegar no mundo sem afundar.




4. Que amizades acabaram, não por falta de amor, mas por excesso de orgulho?

Muitas. O orgulho, como uma parede invisível, vai erguendo barreiras onde antes havia cumplicidade. Já aprendi que o orgulho não é sinal de força, mas de fragilidade. O verdadeiro poder está na vulnerabilidade, na capacidade de pedir desculpa, de estender a mão, mesmo quando as feridas ainda estão frescas. O orgulho, quando se sobrepõe à amizade, torna-se a última desculpa que damos a nós mesmos para justificar o afastamento.




5. Tens amigos que te dizem o que precisas ouvir — ou apenas os que reforçam a tua zona de conforto?

Tenho alguns que me desafiam. E são esses os que mais me fazem crescer. Quando me dizem o que preciso ouvir, às vezes dói, mas é uma dor que aprecio — porque me faz acordar. A amizade que reforça apenas o que já sei, que me mantém na zona de conforto, já não me interessa. Prefiro os que me empurram para o novo, para o desconhecido, para o crescimento, mesmo que isso signifique desconstruir parte do que eu achava ser seguro.




6. Estás rodeado de quem te eleva ou de quem te tolera?

A minha vida hoje é feita de uma escolha intencional. Concentro-me nas pessoas que me elevam. As que sabem partilhar o peso das minhas inquietações sem julgamentos. As que me empurram para mais alto, mesmo quando não tenho forças para subir. As outras, as que me toleram sem me compreenderem, ficam no passado. E estou em paz com essa escolha.




7. És amigo como queres que sejam contigo — ou apenas exiges o que não sabes oferecer?

Já exigi mais do que sabia dar. E isso trouxe-me mais solidão do que companhia. Hoje, procuro ser amiga na mesma medida em que me dou a mim mesma — com compreensão, com paciência, com respeito. A amizade não é um jogo de cobranças. É um terreno fértil onde se plantam valores, e é isso que me permite oferecer o melhor de mim sem esperar uma compensação.




8. Sabes aceitar o silêncio de um amigo sem sentir abandono?

Hoje, sim. A maturidade traz essa capacidade: entender que o silêncio não é um abandono, mas sim uma forma de respeito pelo espaço do outro. Quando um amigo se cala, aprendi a não preencher esse espaço com medo ou ansiedade. Às vezes, o que precisamos é de quietude, de um tempo onde as palavras não são necessárias.




9. És capaz de não perguntar, e ainda assim compreender?

Sim. Ao longo dos anos, aprendi que a amizade verdadeira não precisa de perguntas incessantes. Quando alguém está ao meu lado, no silêncio, na companhia sem pressa, já sei o que está por detrás do olhar. Sei quando o outro precisa de um abraço sem pedir, ou de um espaço sem dizer uma palavra. Às vezes, a melhor forma de compreender é estar disponível sem necessidade de perguntar.



10. Já foste o porto seguro de alguém — ou apenas caiste na tentação de ser salva-vidas?

Já fui porto seguro. E já fui salva-vidas. Mas com o tempo, percebi que a amizade não é um sacrifício constante. A verdadeira amizade é aquela em que há troca mútua, onde ambos se encontram em terra firme, prontos para se apoiar, mas também prontos para se libertar dos pesos que não são nossos para carregar. Aprendi a ser porto seguro de mim mesma, primeiro, para poder ser porto para os outros sem me perder.




11. Estás disponível para um amigo mesmo quando ele não consegue ser “agradável”?

Sim. A amizade não deve ser um teste de paciência. Deve ser a aceitação plena do outro, mesmo quando ele está no seu pior. Porque, no fundo, todos passamos por momentos em que não conseguimos ser quem gostaríamos. Estar disponível para um amigo nesses momentos é a maior prova de amor.




12. Sabes pedir ajuda aos teus amigos — ou só sabes oferecer?

Já me habituei a dar, mais do que a pedir. Mas aprendi que pedir ajuda é um acto de coragem, não de fraqueza. O que me custa, por vezes, é a vulnerabilidade que isso implica. Acredito que é no equilíbrio entre dar e receber que a amizade se torna verdadeira. Não se pode esperar sempre estar em posição de força.




13. Até que ponto te sacrificas por amizade, e quando isso começa a ser auto sabotagem?

Já me sacrifiquei de mais. O limite entre o sacrifício saudável e a auto sabotagem é subtil. Mas agora, sei que uma amizade verdadeira não exige que eu me perca no caminho. Não se trata de anular quem sou para agradar. Amizade é sobre complementaridade, não sobre abnegação.




14. És capaz de aceitar que um amigo em sofrimento se afaste de ti — sem transformar isso numa ferida no teu ego?

Hoje, sim. Aprendi que, muitas vezes, quando alguém se afasta, não é uma rejeição. É uma forma de cuidar de si mesmo. Sei que a dor de outro não é algo que eu deva carregar, embora o deseje fazer. O respeito pelo espaço do outro é uma das maiores lições que aprendi.




15. Já estiveste presente por inteiro num momento de silêncio absoluto de alguém?

Sim, estive. E é uma das experiências mais profundas que já vivi. Estar presente quando o outro não diz nada, quando tudo o que ele precisa é de estar ali, sem pressões, sem palavras. A amizade verdadeira também é sobre isso: o respeito pelo silêncio, pela dor não dita, pela ausência momentânea do outro.


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