Carta à Morte

 Querida Morte,

Hoje decido escrever-te, como quem se dirige a uma velha conhecida que nunca encontrou pessoalmente, mas cuja sombra é constante companhia. Escrevo-te no silêncio da minha contemplação, naquele espaço onde as palavras surgem despidas de qualquer pretensão e onde o medo não encontra guarida. Não me acomodo na tua presença, mas também não te repudio; és a certeza incómoda que vagueia pelo limiar do meu ser, imperturbável, indiferente ao ruído que fazemos sobre a efemeridade que carregamos. És um enigma imortal, impossível de ignorar e demasiado intangível para entender completamente. Não és a vilã que tantos pintam, nem a redenção que outros procuram; és apenas inevitável. Um reflexo da passagem do tempo, um portal inevitável através do qual todos os que amei, amo ou amarei passarão — e que um dia também será meu de atravessar. Mas explica-me, se és a guardiã do equilíbrio universal, por que te sentes, por vezes, tão arbitrária? Por que levas os sorrisos inocentes que ainda aprendiam a existir e deixas os que clamam pelo fim? Serás justiça cega ou apenas um mecanismo surdo ao sofrimento que deixas atrás de ti?

Reconheço-te como mestra impiedosa, porque por ti compreendi a urgência de viver. Ensinas sem palavras, mas com mãos inexoráveis: a perda. Cada despedida imposta por ti é uma pregação em minha alma, lembrando-me que o agora é insubstituível. Torna-se impossível subestimar a beleza de uma risada ou a preciosidade de um abraço, quando sei que tu, paciente e inevitável, aguardas no horizonte. A mortalidade que me assombra também me ilumina, forçando-me a valorizar o momento breve em que os raios de sol ainda aquecem o rosto.

Não te escrevo com amargura, embora me tenhas arrancado partes de mim que jamais voltarei a tocar. Amores, amizades, memórias vivas que outrora respiravam a mesma brisa que eu… levaste tudo contigo, uma prova do teu poder absoluto. Mas sou grata, de uma forma que até me surpreende ao confessar. A dor que plantaste ensinou-me a urgência da existência, deu-me o ímpeto para rir mais alto, amar mais fundo e perdoar mais rápido. É paradoxal, eu sei, mas entre as tuas sombras encontrei lampejos de luz.

Sei que me esperas. Por mais que escreva estas linhas como se tivesse a eternidade em minhas mãos, há um canto da minha mente que reconhece que também te encontrarei, como todos os que me antecederam. Não fujo de ti, mas não antecipo o momento. Quando chegares, espero que venhas como uma brisa ao apagar de uma chama, suavemente. Não como uma tempestade que devora o que sou com violência e pressa. Merecemos uma despedida digna, tu e eu, porque até as certezas merecem respeito.

Até lá, querida Morte, vou vivendo. Deixo palavras e gestos, rascunhos do que fui, para que o mundo saiba que aqui estive e que vivi, plenamente, apesar da tua vigilância constante. Não preciso derrotar-te, porque a vitória não está em escapar de ti, mas em apreciar cada instante que antecede a tua chegada.

E assim encerro esta carta, com uma mensagem não de adeus, mas de compromisso: encontraremos o nosso momento. E, quando isso acontecer, espero partir com serenidade, olhando para trás com orgulho de cada riso, lágrima e passo que dei na breve jornada entre o nascer e o fim.

Com a sinceridade que só uma mortal pode ter,

A tua futura viajante.

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