A Arte de Coser a Alma.
Há algo na dor que não se explica, mas se experimenta. Uma dor profunda, quase ontológica, que não surge de um simples mal-estar passageiro. Esta dor é raiz e ferida. É um corte invisível que grita na alma, mesmo quando a boca permanece cerrada. Encontrei-me nesse estado, fragmentada. Cada parte de mim parecia descolada do todo, um emaranhado desconexo de memórias, mágoas e expectativas frustradas. Era como se, em algum momento da minha jornada, eu tivesse deixado de ser uma casa e me tornara um campo de ruínas.
Foi então que me deparei com a ideia. Cosê-lo. Não sabia como ou com que instrumentos, mas a intuição feminina — essa força ancestral — sussurrou-me: "Cose-te, salva-te". Era uma promessa de redenção autoimposta, um caminho de remendo e reconstrução. Peguei na agulha imaginária e no fio metafísico feito de paciência e determinação.
O primeiro ponto foi como uma punhalada: precisei rasgar as costuras antigas, abrindo feridas que pensava cicatrizadas. Era assustador expor-me assim, vulnerável, até para mim mesma. A dor dilacerava, mas compreendi que esse era o preço a pagar para restaurar-me. Cada ponto subsequente exigiu um confronto direto com as partes de mim que renegara: os erros que neguei, as traições que silenciei, os medos que deixei hibernar.
Chorei lágrimas tão salgadas que poderiam ter estancado feridas reais. Mas também chorei lágrimas doces, essas que só surgem quando encontramos pedaços de nós que julgávamos perdidos. A minha alma parecia estar a regressar, chamada a cada ponto que eu fazia. Cosia-me com algo mais do que linha: cosia-me com esperança, cosia-me com histórias esquecidas, cosia-me com um amor por mim mesma que eu desconhecia ser capaz de sentir.
Havia momentos de exaustão e dúvida. Perguntei-me inúmeras vezes se me bastava coser ou se o tecido rasgado não estaria condenado a ser descartável, por mais que eu o remendasse. Seria eu apenas uma tapeçaria de remendos mal feitos, ou uma nova obra, resplandecente porque abraçava as cicatrizes como medalhas de sobrevivência?
O último ponto foi catártico. Não porque representava o fim, mas porque simbolizava o início de algo maior. Chorei de emoção ao dar aquele último nó, não porque estava perfeita, mas porque estava inteira novamente. O meu tecido, outrora esgarçado, estava fortalecido. Não liso, nem impecável, mas com uma textura rica que contava histórias. As linhas cruzadas sobre as fendas eram testemunho da coragem de encarar-me de frente, do resgate de uma identidade despedaçada.
Hoje olho para mim como quem contempla uma tapeçaria artesanal. Vejo a complexidade dos fios, a beleza nos contrastes, a harmonia nas assimetrias. E percebo que coser-me não foi apenas remediar a dor; foi elevar-me. Cada ponto trouxe-me mais do que cura, trouxe-me transformação. As cicatrizes contam as minhas lutas, mas as linhas, ah, as linhas... essas contam o meu renascimento.
Cosida, sim, mas mais viva do que nunca. Uma mulher que não foge da dor, mas antes a tece, transformando-a num manto que me protege e me celebra. Sou a criadora do meu próprio tecido. Uma obra inacabada, mas incomparável.
E nesse caminho, compreendi que a minha agulha e fio não eram realmente meus. Afinal, nunca estamos sozinhos na arte de coser a alma. Quando estendi as mãos para procurar o fio certo, deparei-me com algo maior: era Deus que me entregava os instrumentos. Ele, o Pai, que vê cada pedaço esgarçado e o transforma em potencial de redenção, ensinou-me a coser-me a mim mesma como um reflexo do Seu amor.
O Bordado Celestial da Alma.
Houve um tempo em que a minha alma parecia um pano rasgado, pendente entre o céu e a terra. Cada fio solto era uma lembrança da minha fragilidade humana, uma prova do quão pequena e imperfeita sou diante da grandeza divina. Nesse tempo de agonia, uma voz silente ressoou no meu interior: "Cose-te, minha filha." Era a voz do Espírito Santo, doce e firme, a guiar-me para a única cura possível: render-me ao bordado de Deus.
Peguei, então, na agulha e no fio que me foram dados, mas percebi que não costuraria sozinha. A minha agulha era a fé; o fio, a graça. Com cada ponto, invoquei a Virgem Maria, Mãe de todas as mães, Ela que conheceu a dor mais profunda ao ver o seu Filho pregado na cruz, mas que nunca permitiu que essa dor rompesse os fios que a uniam a Deus. Lembrei-me das Suas mãos, delicadas e firmes, que outrora bordaram mantos para o pequeno Jesus e que agora, creio, seguram o meu pobre tecido com amor e paciência.
O primeiro ponto foi dado com uma oração trémula. As minhas mãos espirituais vacilavam, como quem não sabe por onde começar. Senti o primeiro rasgo: o orgulho. Doeu profundamente ver o quanto as minhas próprias decisões haviam afastado a plenitude divina da minha vida. Mas Maria, com a Sua serenidade materna, ensinou-me a permanecer. "Faz como eu", parecia dizer. "Permite que cada ponto seja uma entrega."
Jesus Cristo, Aquele que também foi rasgado por mim na cruz, tornou-se o modelo perfeito de costura. Ele, que se deixou perfurar pelas lanças do mundo, fez do Seu corpo o próprio remendo da humanidade. E, assim, cada ponto meu era uma lembrança da Sua Paixão. A dor da agulha que feria o meu coração rasgado era ínfima perto da dor do Salvador, mas ainda assim tinha um peso, porque significava transformação.
O Espírito Santo guiava as minhas mãos como quem sopra sobre uma chama prestes a extinguir-se. Era o Consolador que me fazia compreender que o bordado da alma requer constância, fé e silêncio. Cada vez que hesitava, Ele soprava palavras de vida: "O que está rasgado será restaurado. Basta confiar."
Mas foi Deus, o Pai, o Grande Tapeceiro, que tornou a minha costura possível. Olhando para as minhas imperfeições, acolheu-me tal como sou, com as marcas e cicatrizes que carrego. Porque Ele é aquele que vê, não o tecido estragado, mas o potencial de beleza que há em cada fio que volta a unir-se.
E o último ponto… Ah, esse foi especial. Não foi dado com pressa, mas com solenidade e devoção. Senti Maria ao meu lado, como se colocasse a Sua mão sobre a minha, tal como uma mãe que ensina a filha a bordar pela primeira vez. Senti Jesus a abraçar o meu tecido imperfeito com o mesmo amor com que acolheu o ladrão arrependido no Calvário. Senti o Espírito Santo no silêncio sublime daquele momento, e, acima de tudo, senti o Pai a sorrir.
Agora olho para o manto da minha alma e vejo algo que não está apenas remendado: está glorificado. Cada ponto conta a história de como Deus cosia comigo, cada linha é testemunho de que a rendição à Sua graça torna mesmo as maiores rasgaduras um bordado celestial.
Tal como Maria bordou, em silêncio, o destino de Deus na carne do Seu Filho, assim cada um de nós é chamado a coser a sua alma com fé, entrega e esperança. No fim, o manto da nossa vida, tal como o manto da Virgem, será uma obra tecida com amor e para o Amor. E só Ele, o Deus Trino, poderá olhar para a obra concluída e dizer: "Está consumado. É belo."