A Coragem de Ser Eu
Não nasci para caber nas molduras desenhadas por outras mãos, nem para me ajustar aos contornos limitados de uma ideia de perfeição que nunca desejei para mim. Não sou, nunca fui, nem serei o protótipo idealizado de quem os outros esperam que eu seja. Não me movo ao som de expectativas alheias, porque as minhas, essas, já são suficientemente inquietantes e exigentes. Afinal, sou feita de carne, nervos, sonhos e um desassossego constante que me leva a buscar o inominável – o que vive para além da aparência e do supérfluo.
Carrego em mim uma vocação inabalável para sentir, para ser, para existir em toda a minha densidade e contradição. Sinto de uma forma que talvez incomode; ora demasiado, ora de menos, mas sempre de verdade. O meu coração é vasto e as suas ondas imprevisíveis, e há dias em que até eu me surpreendo com a corrente que me atravessa. É que a vida pulsa em mim com um ímpeto bruto, e não sou capaz de a diluir para caber em normas ou caixas apertadas. As minhas emoções não têm filtro, e é nesse rasgar de véus que encontro a minha verdade – uma verdade nua, sem adornos nem pretextos, por vezes bela e outras tantas feia. Mas nunca artificial.
Talvez esperassem de mim suavidade ou algum tipo de coerência apaziguadora, mas eu recuso essa docilidade que constrange. Sim, sou feita de arestas. Sim, às vezes choco, às vezes desiludo, mas é nessa liberdade de existir em todas as dimensões, belas e imperfeitas, que reside o meu orgulho maior: o de ser humana. O de ser mulher que ri alto demais, que chora nos momentos mais inesperados, que, sem pedir licença, coloca as palavras na mesa sem polimento, mas com honestidade. Não sou feita para enfeitar. Sou feita para inquietar, para sentir profundamente o mundo e as suas dores, as suas alegrias, as suas ironias.
E por favor, não me reduzas à expectativa que tens sobre mim. Porque o peso disso seria insuportável. Não estou aqui para agradar, e confesso, humildemente, que falho tantas vezes em ser sequer aquilo que idealizo para mim. Como poderia, então, tornar-me prisioneira da ilusão de perfeição projetada por outros? Na verdade, entre ser “adequada” e ser autêntica, escolho sempre o caminho mais difícil. É um caminho que exige coragem, vulnerabilidade, entrega. Mas é também o único caminho que me faz sentir viva.
Sou uma busca constante. Uma tensão irresolúvel entre o que sou e o que quero ser, entre o que a vida me pede e o que eu insisto em oferecer. Talvez esse caos te irrite, mas a mim fascina-me, porque é lá, no coração do turbilhão, que encontro a minha humanidade. E não há propósito maior do que este: viver com intensidade, com verdade, com toda a complexidade que a existência exige. Mesmo que isso signifique, tantas vezes, não estar à altura de nada, nem de mim própria.
Por isso, deixo-me ser. Deixo-me errar, porque nos erros encontro as margens da minha humanidade; deixo-me tropeçar, porque no tropeço revejo a minha força em levantar-me. Deixo-me contradizer, porque a coerência absoluta nunca fez morada em ninguém que seja verdadeiramente vivo. Não sou feita de pedra. Sou barro, em permanente moldagem. Não tenho linhas retas, porque a minha essência é curva, errática, emaranhada nas tantas experiências e sentimentos que me atravessam. Ser gente – ser, de facto, inteira e não apenas a aparência do que outros gostariam que eu fosse – é assumir todas as dimensões que me constituem: o avesso e o direito, o claro e o escuro.
Há dias em que, confesso, me canso. Canso-me do peso de não caber nas expectativas que me cercam, mas também canso-me de tentar caber nas minhas próprias. Sou severa comigo mesma de uma forma que nem sempre confesso em voz alta, mas há uma parte de mim – ainda pequena, mas a crescer – que aprendeu a perdoar-me por isso. Aceitei, enfim, que sou processo, não produto acabado. Aceitei que a imperfeição não é só inevitável; é preciosa. Porque é nela que reside a beleza mais bruta, aquela que não foi polida até perder o que a torna única.
Quero, acima de tudo, libertar-me do olhar dos outros. Quero existir em transparência, sem artifícios. Isso assusta. E não te enganes: não é apenas os outros que temem essa exposição, essa sinceridade desarmante. Por vezes, até eu tremo diante da minha própria nudez emocional. Contudo, ainda assim, insisto. Insisto porque a alternativa – esconder-me por detrás de máscaras convenientes – é viver de uma forma que não me serve, que me esvazia, que me fere. Não preciso ser interessante, muito menos adorável. Preciso ser real.
E a realidade, ah, essa é tão mais rica, ainda que mais difícil. A realidade permite-me sentir os extremos – as alegrias avassaladoras que quase doem e as tristezas que escavam abismos dentro de mim. Permite-me, também, caminhar no cinzento, quando não sei ao certo quem sou ou o que sinto. Permite-me experimentar e questionar sem medo de errar, porque no erro há sempre algo a aprender. Permite-me ser egoísta quando preciso cuidar de mim, generosa quando o mundo exige entrega. Acima de tudo, permite-me ser contraditória e, nesse jogo entre quem fui, quem sou e quem serei, descobrir novas formas de existir.
Se isso me torna imprevisível, que seja. Não quero a rigidez dos que já se definiram por completo; quero o espaço vivo do que ainda pode ser. Quero o desassossego que impele a mudança. Quero ser como um rio: fluída, mutável, tão imprevisível quanto livre. Sejam as tuas expectativas, ou as minhas, um recuo diante dessa corrente. Eu vou continuar a seguir o curso das águas que me levam para onde devo estar, mesmo que o destino seja incerto.
E no final, se nada mais me sobrar, pelo menos terei a certeza de uma coisa: fui genuinamente humana. Fui tudo o que podia ser. E talvez, por isso mesmo, tenha sido tudo.
E quando olho para trás – para todas as escolhas, os desvios, as quedas e as ascensões – percebo que a linha da minha vida não é um traço reto e uniforme. É uma costura irregular, de remendos imperfeitos, de fios entrelaçados que nunca obedeceram a padrões exatos. Essa linha não busca agradar a ninguém. Nem mesmo a mim, às vezes. Mas é exatamente essa teia caótica que carrego como símbolo daquilo que sou: uma obra em progresso, inacabada, mas repleta de autenticidade.
Já não quero viver numa lógica de cumprimento ou de desempenho. A perfeição é estéril; não deixa margem para o erro que ensina, para o silêncio que abriga, para o vazio que cria espaço. A obsessão por ser tudo aquilo que os outros esperam – ou, pior, por corresponder a uma versão ideal de mim mesma – rouba o brilho cru da existência. E o que é a vida sem essa imperfeição sublime?
Recuso-me, portanto, a ceder à tirania das expectativas. Não tenho pretensão de ser quem ilumina todos os caminhos, resolve todos os dilemas ou permanece impassível nos momentos de tempestade. Se a vida é feita de oscilações – dias de luz intensa e dias de sombras opacas –, então é meu dever honrar cada um desses momentos como parte integrante do que significa estar viva. Porque estar viva, para mim, não é ser perfeita. É ser presente. É ser inteira. É ser capaz de olhar para o caos que me compõe e dizer: “Esta sou eu.”
E se houver momentos em que não correspondo – nem às exigências dos outros, nem às minhas próprias – aceito que isso faz parte do processo de viver em verdade. Há uma beleza rara na humildade de admitir que somos insuficientes, que somos falíveis, que nem sempre sabemos quem queremos ser. No entanto, é nesse desconhecido que reside a magia: a capacidade de nos recriarmos continuamente, de reescrevermos o nosso papel no grande teatro da existência.
Por isso, avanço. Avanço com medo, com dúvidas, mas também com coragem, porque aprender a existir fora das expectativas é um acto revolucionário. Não sei onde vou parar, e para ser honesta, já não quero saber. A liberdade de viver por inteiro é o único destino que me interessa, mesmo que venha com o preço do incerto, do desconforto, da incompreensão. Porque, no final, aquilo que me define não é o que os outros projetam em mim, mas aquilo que sou quando me permito ser, sem filtros, sem máscaras, sem medo.
Deixarei que os outros fiquem com as suas molduras estreitas, as suas críticas e os seus julgamentos. Quanto a mim, escolho o caminho mais desafiador, mas também o mais verdadeiro: ser quem sou, sem concessões. Escolho a vulnerabilidade em vez da armadura, a imperfeição em vez do artifício. Porque só assim posso realmente habitar o que me foi dado de mais precioso: a minha própria humanidade.
E, no fim, pergunto-me: o que resta de nós, senão aquilo que vivemos de verdade? A máscara pode até ser admirada por um tempo, mas nunca será amada, porque aquilo que é falso não cria raízes em lugar nenhum. Só o que é autêntico, ainda que falho, tem o poder de tocar, de transformar, de permanecer.
Compreendo agora que viver é um ato de coragem incessante. Coragem de falhar. Coragem de ser. Coragem de dizer “não sei”, quando a expectativa exige certezas, e “não consigo”, quando a pressão pede resultados. É na aceitação da minha humanidade – com toda a sua imperfeição e contradição – que encontro liberdade. Não a liberdade superficial de fazer o que quero, mas a liberdade mais profunda de ser quem sou, em cada momento, sem medo do julgamento alheio ou do meu próprio.
Há quem viva preso ao ideal de ser "suficiente" para os outros, como se o amor ou o valor residissem nesse cumprimento. Mas não. Descobri que não nascemos para sermos definidos pelos limites de fora. Somos vastos demais para caber num molde, intensos demais para viver em contorno. E se me resta uma lição deste caminho, é esta: a vida só faz sentido quando nos entregamos ao que somos, quando deixamos de tentar caber no mundo e nos permitimos criar o nosso.
E se isso incomoda, tudo bem. Que a minha verdade assuste, que a minha transparência desarme, que a minha humanidade irrite os que buscam na vida algo mais linear. Porque no fundo, há uma paz quase subversiva em simplesmente existir tal como sou: falível, imprevisível, mas irrepetível. A vida não me foi dada para ser perfeita, nem para agradar, mas para sentir até onde posso, para ser até onde consigo, e para, em cada erro e em cada triunfo, reconhecer a única coisa que me define verdadeiramente: fui, até ao fim, profundamente eu.