Com os Pés em Ferida: A Peregrinação da Alma
Ser peregrina é nascer todos os dias dentro de um caminho que não conhece atalhos. É caminhar com o coração descalço, mesmo quando os pés sangram. É vestir-se de esperança quando a alma se rasga nas bordas do percurso e, ainda assim, continuar.
Caminhar cansada é carregar um corpo exausto e, mesmo assim, encontrar no espírito uma centelha viva — aquela que arde, mas não se consome. As bolhas nos pés não são meras lesões: são mapas. Marcas inscritas pelo tempo, pela persistência, pela fé que recusa extinguir-se. E entre os dedos, onde já não há pele, há nervo exposto — sensibilidade pura, verdade sem véu.
É caminhar com os pés em ferida.
Não apenas com os pés físicos — mas com os da alma, ferida de tanto amar, de tanto esperar, de tanto prosseguir sem certezas.
É o passo dado mesmo sabendo que a dor virá.
É o chão pisado com temor, mas também com fé.
A ferida não é apenas dor.
É portal. Chamamento. Ventre aberto onde renasce aquilo que verdadeiramente somos.
É o espaço onde a alma se revela despida — sem máscaras, sem orgulho, sem defesas.
Ela pulsa para lembrar-nos que ainda sentimos. Que ainda vivemos.
Há feridas que falam antes da boca.
Feridas que são memórias corporificadas, onde o tempo não cicatrizou plenamente, onde ainda pulsa o amor que nunca partiu por completo.
A ferida é também linguagem entre o humano e o divino.
Deus toca-nos através dela — não com o dedo do castigo, mas com a mão do artesão.
Na ferida, Ele modela-nos com paciência eterna, ensinando-nos que a beleza não reside na ausência de dor, mas naquilo que escolhemos fazer com ela.
As dores surgem como cravos, como espinhos cravados no calcanhar.
Mas revelam. Forjam o ouro do espírito.
Recordam-nos que a carne é efémera, mas a alma é eterna — e expande-se em cada passo vacilante, em cada tropeço que nos levanta.
Nossa Mãe sustém-nos.
Ela, que conhece o peso da cruz e o perfume das flores que desabrocham no deserto.
Ela fala por nós, mesmo quando nos faltam palavras.
Ela sussurra ao Filho:
“Vê, meu Filho, os teus. Caminham com os pés em ferida, mas caminham.
Trazem bolhas, mas também coragem.
Vêm por Ti, mesmo cansados, mesmo sem ver-Te plenamente.
"Acreditam-Te no silêncio.”
E o Filho pede ao Pai:
“Pai, contempla as suas chagas — são irmãs das Minhas.
Eles seguem-Me, ainda que desorientados,
amam com feridas abertas, confiam sem provas.
Sustenta-os, pois mesmo sem pele, ainda caminham.”
E é por isso que não cessamos.
Porque cada passo sofrido se converte em semente.
Porque no fim, não seremos lembrados pela firmeza do calçado, mas pela veracidade das pegadas.
A ferida é altar.
É encontro.
É semente do céu semeada na carne.
E é por isso que, mesmo em ferida — ou talvez por isso mesmo —, ainda caminhamos.