Lidei com os meus traumas — quase todos.
Não há nisto qualquer gesto de triunfo simplista, nem qualquer celebração vazia de superação. A palavra "quase" permanece ali como um vestígio de verdade, a nota dissonante que impede a ilusão da cura total. Porque há dores que não se dissolvem: transmutam-se, integram-se, modulam-se com o tempo, mas continuam a respirar em silêncio nas dobras mais ocultas da memória. Viver com trauma não é viver à margem da vida — é viver com o permanente labor de decifrar os seus ecos.
Durante anos, enfrentei esse labor com a delicadeza de quem tenta reconstruir uma porcelana caída. Fiz da minha psique um campo de escavação arqueológica, onde cada fragmento exigia atenção, escuta e linguagem. E esse processo — lento, árduo, por vezes devastador — foi conduzido através de múltiplas práticas terapêuticas, que não foram apenas técnicas: foram, em muitos momentos, actos de ressurreição.
A terapia do sonho, herdeira do pensamento junguiano, constituiu um dos primeiros portais de acesso ao inconsciente. Freud via o sonho como realização disfarçada de desejos reprimidos; Jung, como uma linguagem simbólica autónoma, onde o inconsciente pessoal se encontra com o inconsciente colectivo. Para mim, os sonhos tornaram-se um território de revelação. Anotar, interpretar, escutar os símbolos — a casa, o mar, o espelho, a criança — era decifrar códigos deixados por partes de mim que ainda não tinham aprendido a falar à luz da vigília. Os sonhos não mentem. São, frequentemente, o primeiro grito de uma dor que ainda não encontrou palavras.
A terapia da escrita seguiu-se, ou talvez tenha sempre estado presente. Escrever foi um gesto de transfiguração do indizível. Inspirada por autores como Hélène Cixous e Clarice Lispector, compreendi que a escrita feminina — marcada pela escuta do corpo, da ausência e da ferida — não é apenas estética, é política e psíquica. Através da escrita tornei-me sujeito da minha própria narrativa, libertando-me do lugar passivo de vítima. Não escrevia para relatar factos, mas para escavar sentidos. Porque há um momento em que o trauma deixa de ser apenas acontecimento e se torna linguagem — e é aí que a cura começa.
Descobri depois a terapia da pintura. A arte visual deu-me um espaço pré-verbal, onde o gesto precedia o conceito. Ali, a cor e a forma substituíam a necessidade de nomear. Pintar era um acto orgânico, intuitivo, por vezes violento, outras vezes meditativo. As linhas tortuosas, as texturas, os vazios — tudo ali dizia o que eu não ousava dizer. Kandinsky escreveu sobre a espiritualidade na arte, e compreendi-o finalmente: cada tela minha era um relicário da alma em desordem, uma tentativa de reconstruir o que se partira. A arte era refúgio e afronta. Era, sobretudo, presença.
Na terapia da música, acedi a um outro plano. A música opera a um nível liminar, onde emoção e cognição se entrelaçam de modo irreversível. Ouvir certas peças — Bach, Arvo Pärt, Björk, por exemplo — era como ser conduzida por uma força não racional até ao cerne de uma emoção recalcada. Mais ainda: compor, improvisar sons, permitir à voz o espaço de vibrar sem forma nem vergonha, era um regresso ao corpo como instrumento de expressão. Como nos rituais ancestrais, a música convocava a memória da dor, mas também a da comunhão. Há feridas que apenas o som alcança.
Fiz terapia individual durante vários anos. Um trabalho meticuloso e exigente de análise, onde a transferência e a contra-transferência revelaram mais do que qualquer manual. A relação terapêutica — esse vínculo singular entre terapeuta e paciente — tornou-se o lugar seguro onde as narrativas fragmentadas podiam ser reorganizadas. Nomear os afectos, diferenciar os afectos primários dos secundários, reconhecer mecanismos de defesa (projecção, dissociação, racionalização) — tudo isto exigia um rigor emocional que fui aprendendo com o tempo. Não se trata de “falar sobre os problemas”; trata-se de reorganizar a arquitectura interna que esses “problemas” danificaram.
A terapia de grupo trouxe outra dimensão: o testemunho. Estar diante do outro, escutar e ser escutada, reconhecer-me nos relatos alheios, foi um exercício de descentramento e pertença. No grupo, as narrativas deixam de ser privadas e envergonhadas. Tornam-se partilhadas, reconhecidas. A vergonha cede lugar à empatia. A solidão transforma-se em comunidade. Como escreveu Lévinas, “o rosto do outro obriga-me” — e essa obrigação é cura.
O trauma não é apenas uma lembrança dolorosa. É uma ferida psíquica que se cristaliza no corpo, no sistema nervoso, na forma de estar no mundo. Pode ser causado por eventos abruptos — abusos, perdas, violência — ou por uma sequência de micro-violências, negligências e ausências que, gota a gota, escavam o ser. Bessel van der Kolk afirmou que “o corpo guarda as marcas do trauma” — e é verdade. As dores somáticas, os bloqueios respiratórios, as reacções desproporcionais, os padrões repetitivos — tudo isso são linguagens do corpo a pedir escuta.
Não se ultrapassa um trauma sem o enfrentar. E enfrentá-lo não significa revivê-lo de forma cega. Significa criar condições internas e externas para que ele possa ser simbolizado. O que não é simbolizado, actua-se. O que não é dito, repete-se. Fugir da dor é perpetuar o seu domínio. Só se transforma aquilo que se encara com presença e discernimento. A negação, o evitamento, a repressão — mecanismos naturais de defesa — tornam-se, com o tempo, prisões.
O verdadeiro enfrentamento do trauma exige tempo, contenção, apoio especializado, escuta empática e, sobretudo, um compromisso com a verdade interior. O trauma não é algo a ser esquecido. É algo a ser integrado. Quando a dor encontra linguagem, quando a memória encontra elaboração, quando a experiência encontra testemunho — então sim, algo muda. E o que antes era ferida passa a ser cicatriz. E uma cicatriz, embora sinal do que foi, já não dói. Apenas lembra.
Hoje, após esse longo processo — e ele continua, porque o trabalho psíquico nunca se conclui — posso afirmar: lidei com os meus traumas, quase todos. E nessa quase vitória, há uma dignidade que não trocaria por nenhuma ilusão de perfeição.
O trauma escreve-se no corpo antes de se inscrever na consciência.
Esta constatação mudou radicalmente a forma como compreendi o meu próprio sofrimento. Durante anos, eu procurava narrativas que explicassem a dor — cronologias, causas, relações. Mas havia um estrato mais profundo, quase inatingível pela linguagem, onde o trauma se manifestava sem pedir autorização: no batimento cardíaco acelerado perante um som inócuo, na tensão muscular crónica, na dificuldade em respirar quando o silêncio se tornava denso. Era o corpo a lembrar-me do que a mente não conseguia sustentar.
A neurobiologia ensina-nos que o trauma altera o funcionamento do sistema nervoso central. Quando uma experiência ultrapassa a capacidade de processamento emocional — especialmente se for vivida sem suporte — o cérebro activa mecanismos de sobrevivência (luta, fuga ou congelamento). O sistema límbico, em especial a amígdala, entra em hiperactividade. O hipocampo, que contextualiza a memória, é inibido. E o córtex pré-frontal, responsável pela regulação e tomada de decisões racionais, “desliga”. O trauma, portanto, não é uma lembrança: é uma impressão corporal, um alarme que permanece activado mesmo na ausência de perigo.
Por isso, lidar com trauma não pode ser apenas um exercício cognitivo. É necessário envolver o corpo, regular o sistema nervoso, restaurar o sentimento de segurança fisiológica. A psicoterapia somática, as práticas de respiração consciente, o movimento corporal intuitivo — tudo isso constitui, hoje, parte do meu percurso de recuperação. Aprendi que só se pode pensar com clareza quando o corpo não está em estado de alarme. E que a mente, por mais luminosa que seja, nada pode fazer sem o chão do corpo.
Foi por essa razão que, ao longo dos anos, optei por um modelo de psicoterapia integrativa — um modelo que não divide o ser humano em partes estanques. A mente, o corpo, a emoção, o inconsciente, a história familiar, a cultura, o género, a espiritualidade — tudo se entrelaça. Trabalhei com terapeutas que me proporcionaram múltiplas linguagens: da psicanálise relacional à psicoterapia existencial, da arte-terapia à somática, da teoria polivagal à análise junguiana. Em cada abordagem, uma chave distinta; em cada chave, uma porta que levava a outra.
A terapia integrativa não é uma colagem eclética: é uma escuta atenta à singularidade de cada pessoa. A pergunta nunca foi “Qual é o método certo?”, mas sim: “De que forma posso ser verdadeiramente acompanhada na minha dor?”. A resposta não vem de protocolos, mas da presença — e da coragem de permanecer no lugar do não-saber.
Mas, talvez mais do que tudo, foi a filosofia que me ensinou a dar sentido ao sofrimento.
Lembro-me da primeira vez que li Simone Weil: “A dor é a atenção forçada pelo real.” Fiquei em silêncio durante muito tempo. Era isso. O trauma obriga-nos a ver aquilo que o mundo nos ensina a evitar. A dor, longe de ser um erro, é uma revelação do limite. Weil, marcada pela mística cristã e pela ética da atenção, compreendia que a dor é uma forma radical de contacto com o real — não um castigo, mas uma travessia. Não se trata de romantizar o sofrimento, mas de reconhecê-lo como um modo profundo de escuta.
Nietzsche, por seu lado, ofereceu-me uma perspectiva vitalista: “O que não me mata, torna-me mais forte” — frase tantas vezes mal compreendida, mas cuja raiz está na ideia de que o sofrimento, quando transmutado, pode ser fonte de potência. Em vez de sucumbir à dor, o desafio é incorporá-la de forma criadora. E para isso, é preciso atravessar a noite da alma sem apressar o amanhecer.
Por fim, encontrei em Maria Zambrano — filósofa espanhola injustamente esquecida — a noção de razão poética. Para ela, há verdades que não se acedem pela lógica, mas pela intuição, pelo símbolo, pela escuta do invisível. A razão poética é aquela que compreende que o sofrimento não se explica: revela-se. E que há uma sabedoria que nasce do contacto com o inefável.
Hoje, olho para o meu percurso não como um caso clínico, nem como um testemunho de superação, mas como uma travessia existencial.
O trauma fez-me conhecer os subterrâneos da condição humana — o medo, a perda, a humilhação, a ausência de voz. Mas também me deu ferramentas, linguagem, sentido, e — acima de tudo — compaixão. Aprendi a não julgar a dor dos outros, a escutá-la sem querer consertá-la, a respeitar o tempo singular de cada processo.
Lidei com os meus traumas quase todos. E continuo a lidar. Porque a cura não é um ponto de chegada, mas um movimento contínuo de integrar, reconstruir e permanecer fiel à verdade do que nos aconteceu — sem que isso defina quem somos.
Nota: Brevemente publicarei um versão detalhada e elaborada deste texto.