A complexidade de habitar-se: o silêncio que grita por dentro

 Habitar-se é uma das tarefas mais árduas da existência. Viver consigo é um exercício constante de confronto, de aceitação imperfeita e, sobretudo, de resistência. Resistir à tentação de fugir, de calar-se diante do tumulto interior, de disfarçar a tempestade com sorrisos ocasionais. É um acto solitário, mas inevitável, essa convivência com o próprio ser — como se todos os dias despertássemos ao lado de uma versão nossa que ainda não compreendemos totalmente.

Não nos ensinaram a ouvir o que não é dito. Crescemos a correr atrás de significados prontos, de frases feitas, de fórmulas para a felicidade. Mas ninguém nos advertiu que a dor mais funda não se grita, apenas se carrega. Vai-se alojando, sorrateiramente, em gestos pequenos, em silêncios densos, em olhares perdidos. E quando damos por isso, já estamos ocupados demais a sobreviver para conseguir verdadeiramente viver.

A escrita, nesse caos, surge não como escolha, mas como salvação. Escreve-se para não se desaparecer. Escreve-se porque há dentro de nós uma multidão de vozes que não encontram eco noutra parte. E quando o papel nos escuta, ainda que mudo, sentimos que, de alguma forma, deixámos de ser invisíveis. Não se escreve porque se quer; escreve-se porque é preciso. Porque as palavras são o último refúgio antes do abismo.

Mas escrever é também acto de risco. As palavras, ainda que sinceras, são frágeis; moldam-se à percepção de quem lê. A dor que colocamos numa frase pode ser interpretada como beleza estética, e o desespero mais íntimo pode parecer uma metáfora rebuscada. Ninguém nos lê como somos — lêem-nos como conseguem. E nisso reside uma solidão nova: a de sabermos que mesmo quando nos mostramos, continuamos por entender.

Conviver consigo é aceitar que nem sempre seremos belas em nós mesmas. Que haverá dias em que o espelho não devolve rosto, mas cansaço. Que o silêncio, por vezes, grita mais alto que mil vozes. Que o corpo carrega memórias que a mente não sabe nomear. Que o amor-próprio não é um estado permanente, mas uma construção intermitente — feita de quedas, dúvidas, e raras reconciliações com o que somos.

A mulher que habita em mim é tantas. É a que sonha e a que desiste. É a que ama e a que se fecha. É a que fala com firmeza e a que chora sozinha ao entardecer. É a que sorri por educação e a que grita em silêncio dentro do peito. É uma complexidade viva, pulsante, que não cabe em definições simples. E isso, por si só, é uma luta diária: existir sem precisar ser compreendida por completo.

A dor, essa sim, tem linguagem universal. Une-nos na vulnerabilidade. Aproxima-nos, mesmo quando caladas. Ela não precisa ser explicada para ser sentida — apenas reconhecida. E talvez seja por isso que a dor é mais fácil de traduzir do que a alegria: porque ela é constante, fiel, impiedosa. Onde a alegria é epifania, a dor é permanência. Não chega de repente — instala-se. E, com o tempo, aprendemos a conversar com ela, como se fosse hóspede antigo.

Há uma delicadeza crua no viver — como caminhar sobre cacos de vidro com pés descalços. Ainda assim, continuamos. Porque há também beleza no gesto de prosseguir. Mesmo partidos, tentamos ser inteiros. Mesmo cansadas, erguemo-nos. Mesmo sem respostas, continuamos a perguntar.

A esperança, por mais desbotada que esteja, é teimosa. E é talvez nessa teimosia que reside a força da alma feminina: em continuar a sentir, mesmo quando tudo à volta grita para endurecermos. Em continuar a acreditar que há, algures, sentido no caos. Que a existência, por mais fragmentada que pareça, é um processo que merece ser vivido.

Hoje, como ontem, como tantas vezes antes, abri os olhos. Respirei. E isso, por si só, foi um acto de coragem. Habitar-me é meu fado. E entre todas as dores, há também lampejos de beleza — na lágrima que cai em silêncio, no abraço que a memória ainda guarda, na palavra que, quando lida por alguém, transforma solidão em partilha.

Se o mundo continuar a ser áspero, que ao menos sejamos macias por dentro. Que, mesmo sem reencontros garantidos, possamos viver como se cada gesto fosse definitivo. Porque no fim — e também no meio — tudo o que queremos é que alguém, um dia, leia o que escrevemos e diga: eu também senti isto.

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