Não, eu não sou só religião.

 É curioso, esse impulso quase pavloviano que tantos têm de categorizar, de rotular, de reduzir à simplicidade digestiva aquilo que por natureza é complexidade fluida. Não sou apenas católica, e muito menos apenas religiosa. A religião, para mim, não é um confinamento ideológico, nem um dogma estéril repetido em surdina como um mantra de segunda mão. É uma linguagem simbólica, é cultura, é transcendência, é metáfora para aquilo que não cabe nos manuais. E no entanto, não basta. Nunca bastou.

Porque eu vivo tudo. Inteiro. Sem compartimentações morais ou assepsia espiritual. A fé, em mim, não exclui o pensamento — convida-o. Interpela-o. Desafia-o. E se por vezes o ultrapassa, é com a humildade de quem reconhece que há realidades que não se explicam, mas que se pressentem. Eu não me movo por verdades engarrafadas; movo-me pela inquietação. Pela pergunta que nunca se cala. Pela fome de sentido que nunca se sacia.

Sou aluna — mas não da escola formal que ensina com manuais desactualizados e pedagogias de enlatado emocional. Sou aluna da vida real, onde os exames não têm data marcada e a reprovação chega sem aviso prévio. Aprendo, não com fórmulas, mas com fracturas. Não com teorias, mas com experiências que trespassam. A minha maior mestra chama-se dor — não a dor banalizada do discurso motivacional, mas a dor crua, aquela que arranca a pele da alma e exige reconstrução celular da consciência.

Com ela, aprendi anatomia da alma, biologia das relações tóxicas, física da solidão e química do desapego. Aprendi a viver com o silêncio interior dos dias pesados e a sorrir com ironia para a tragédia disfarçada de rotina. Aprendi, sobretudo, que sobreviver é um acto intelectual.

Sou filosofia incarnada. Não como ornamento retórico, mas como estrutura de pensamento. Sou Kant nas fronteiras da razão, Nietzsche nos abismos do eu, Simone Weil no abismo entre justiça e graça. Penso o mundo antes de o consumir, questiono antes de aceitar, duvido antes de acreditar. Não me deixo levar pela espuma das ideologias fáceis nem pelas modas do pensamento fast food que hoje impera nas redes sociais disfarçadas de ágoras.

Sou ciência. Fascina-me o rigor do método, a disciplina do dado, o respeito pelo fenómeno. Não fujo da evidência empírica nem temo a revisão de premissas. A ciência ensinou-me a honrar o erro, a celebrar a hipótese refutada, a aceitar que o conhecimento não é definitivo — é sempre transitório, sempre perfectível, sempre em construção.

Sou matemática. Admiro a beleza da proporção, o consolo da simetria, o mistério da abstração pura. A matemática é a arte de transformar o caos em sentido, de nomear o invisível, de mapear o infinito com a precisão de quem respeita o inominável.

Sou lógica. Não me comovem os argumentos vagos nem me convencem os apelos à emoção sem substância. A clareza é uma forma de amor — e eu pratico esse amor com fervor. Sou raciocínio, análise, dissecação conceptual. Mas também sou criatividade: a centelha que rasga o óbvio, a metáfora que escapa à literalidade, o pensamento lateral que redime o banal. Não há contradição entre razão e imaginação — há tensão produtiva. E eu habito nessa tensão como quem habita uma casa com janelas para todos os lados.

Sou equilíbrio — não o dos manuais de autoajuda, mas o da consciência lúcida. Equilíbrio não é ausência de conflito; é saber dançar com ele sem cair no abismo. Vivo entre extremos, mas não me deixo colonizar por nenhum. O fanatismo, seja ideológico, religioso ou emocional, causa-me náuseas. A histeria moral ofende-me intelectualmente. A subtileza é a minha língua materna.

Sou liberdade. Uma liberdade conquistada, pensada, sofrida. Liberdade não é fazer o que se quer; é saber o que se faz. É assumir consequências, integrar responsabilidades, recusar o papel de vítima perpétua que tanto agrada a uma sociedade viciada em ressentimento. Sou responsável — mas não submissa. Respeito — mas não venero. O respeito que ofereço não é servil; é consciente, adulto, ético.

Sou generosidade, sim — mas com fronteiras. O altruísmo que pratico não é martírio; é escolha. A compreensão que ofereço não é cumplicidade com o erro; é lucidez. A paciência que tenho é fruto de batalhas internas, não de resignação estúpida. Sou muito — e recuso ser pouco para caber na caixa mental de quem prefere categorias a pessoas.

Sou uma mulher em trânsito constante. Um ser em processo, simultaneamente barro e fogo. Não tenho medo da complexidade porque é nela que habito. A vida, para mim, não é um campo de certezas, mas um terreno de escavação constante. E se às vezes pareço ácida, é porque o mundo se tornou demasiado adocicado com hipocrisia.

Sou isto tudo — e mais aquilo que 

ainda não conheço em mim.

E sim — luto com o orgulho.

Não o orgulho altivo que se ostenta em desfiles de vaidade, mas aquele que se esconde, ardiloso, por detrás dos gestos mais nobres. Aquele orgulho que se disfarça de auto-suficiência, que sussurra que não preciso de ninguém, que me tenta convencer de que vulnerabilidade é fraqueza, que pedir é humilhação. Luto com ele porque o reconheço. Não o nego nem o disfarço. A minha guerra não é com inimigos externos — é comigo. O campo de batalha mais sangrento que conheço é interno.

Conheço os meus defeitos. Não por listas ocas recitadas em sessões terapêuticas com sabor a coaching, mas porque me detive, inúmeras vezes, frente ao espelho nu da consciência. Já vi em mim a impaciência travestida de lucidez, a arrogância vestida de competência, a frieza disfarçada de contenção emocional. Já vi a raiva embutida nas palavras certas, a fuga mascarada de independência, o julgamento camuflado de discernimento. Conheço a minha sombra. Não a celebro, mas também não a nego. Aceito-a. É com ela que dialogo nas noites em que o mundo silencia.

E é na solidão que verdadeiramente me encontro. Não a solidão social — essa é fácil de suportar —, mas a outra: a solidão ontológica, aquela que nenhuma companhia humana resolve. Quando tudo se cala, quando as máscaras sociais caem, quando já não sou filha de, profissional de, amiga de — quando sou apenas eu — é aí que se revela a verdade mais crua.

É nesse quarto escondido da alma, onde nem as redes sociais nem as boas intenções chegam, que oro. Não oro com fórmulas, embora conheça os rituais. Oro com o corpo inteiro. Com o silêncio, com a respiração, com a dor, com a gratidão e, por vezes, com revolta. Falo com Deus — não como quem espera respostas mecânicas, mas como quem ousa expor-se ao silêncio que responde com presença. Oro não para convencer Deus de coisa alguma, mas para me lembrar de quem sou quando o mundo não me olha.

Esse quarto — seja físico ou metafórico — é o meu templo mais verdadeiro. Nele, a alma despida encontra o sagrado. E não me refiro ao sagrado institucional, ao ritual repetido como tique nervoso espiritual. Refiro-me ao sagrado enquanto realidade radical: aquilo que me transcende e, ainda assim, me habita. A presença que não vejo, mas que sei. Aquele que não posso provar, mas que se torna impossível negar quando tudo o resto falha. Nele, reencontro-me — não como ideal, mas como verdade: fragmentada, mas inteira na lucidez.

É esse diálogo íntimo, secreto, silencioso, que me sustém quando o ruído do mundo me desorienta. E é por isso que não temo a solidão — ela é, para mim, lugar de revelação. O ruído afasta; o silêncio aproxima. A multidão distrai; a solitude revela. A fé, ali, deixa de ser doutrina para tornar-se relação — nua, imperfeita, mas real.

E se por fora pareço composta, articulada, racional, por dentro sou um caos ordenado com disciplina. Sou feita de dúvidas que não me matam, de feridas que me moldam, de memórias que me ensinam. Não tenho certezas absolutas — tenho convicções pensadas, revisadas, interrogadas. Não me guio por slogans ou hashtags; guio-me por valores que sobreviveram ao crivo da experiência.

E tudo isso — o orgulho combatido, os defeitos conhecidos, a solidão abraçada, a oração secreta — compõe o que sou: um ser em processo, inacabado, intencional. Não pretendo ser exemplo. Pretendo ser autêntica. E, acima de tudo, verdadeira. Mesmo que essa verdade doa. Mesmo que me isole. Mesmo que me exija começar de novo — todos os dias.

E no meio de tudo isto — da dor, da dúvida, da procura, da lucidez solitária —, há uma certeza que não grita mas sustém: sei que Deus me ama.

Não por mérito meu, não por acumulação de virtudes, não por ter cumprido todas as regras do manual. Sei que Ele me ama porque já O senti quando ninguém mais ficou. Quando a vida me reduziu a escombros, quando a lógica falhou, quando o chão desapareceu sob os pés, Ele não saiu. Ficou ali, no silêncio. Não com promessas baratas ou milagres espetaculares — mas com presença. Presença densa, real, subtil. Presença que não invade, mas abraça. Que não exige, mas escuta. Que não obriga, mas chama.

E sei que O amo. Não com um amor protocolar, infantil, cheio de exigências emocionais ou condições. Amo-O com tudo o que sou — com a minha lucidez, com a minha dúvida, com o meu cansaço. Amo-O no silêncio da minha fé madura, que já não precisa de se exibir. Amo-O porque, apesar de tudo, continuo a crer. E crer, para mim, é um acto radical de confiança — quase absurdo, quase insano — num mundo que se desfaz diariamente à frente dos meus olhos.

Não O amo porque a vida corre bem. Amo-O apesar da vida. E talvez seja esse o amor mais honesto. O que resiste à ausência de sinais. O que permanece quando tudo falha. O que não precisa de provas, porque é enraizado. O que não se grita aos quatro ventos, porque já não precisa de ser provado — é vivido.

E sei que Ele sabe. Que me conhece nas partes que nem eu compreendo. Que vê as camadas que escondo de todos. Que sabe das guerras internas, das tentações sutis, das falhas repetidas, dos pequenos orgulhos que disfarço de dignidade. Ele sabe. E ama — ainda assim.

Isso, para mim, é fé: não uma lista de crenças, mas um laço. Um vínculo que resiste ao tempo, à falha, à queda. Não é superstição, nem consolo fácil, nem artifício emocional. É convicção enraizada em experiência vivida. É fidelidade. É silêncio que compreende. É uma reciprocidade que não se exibe. Sei que Ele me ama. E Ele sabe que O amo. Nada mais é preciso.

Sei também que esse amor não me isenta da dor, nem me blinda contra o fracasso. Não peço a Deus que me poupe — peço que me sustenha. E sustenta-me. Mesmo quando a minha oração é silêncio. Mesmo quando não tenho palavras. Mesmo quando só há lágrimas ou cansaço. Ele está. Sei disso com uma certeza que transcende a razão e desafia o cinismo.

E por isso continuo. Falível, frágil, em processo — mas enraizada. Com a cabeça erguida não por orgulho, mas por fé. Com os pés firmes, não por arrogância, mas por convicção. Vivo com o desconforto de não ser perfeita e com a liberdade de já não precisar de o ser.

No fim, talvez seja isso que mais me define: não sou só fé, nem só razão, nem só carne ou espírito, nem só dor ou luz. Sou tudo isso, em tensão. Sou caminho. Sou procura. Sou amor em construção. E nesse movimento inquieto e inacabado, há algo que permanece: sei que Deus me ama. E Ele sabe que O amo.


Manifesto de uma alma lúcida

Eu, ser humano em carne, espírito e pensamento — mulher de sombra e de luz —, declaro-me. Sem medo, sem disfarces, sem redução.

Não sou um slogan. Não sou um rótulo. Não sou uma função social empilhada entre obrigações e aparências. Sou presença viva. Sou consciência em vigília. Sou mistério em andamento.

Recuso viver amputada por convenções, condicionada por aplacamentos culturais ou castrada por moralismos sem alma.

Não sou só religião. A fé que trago não cabe numa moldura dogmática. A minha relação com Deus não é doméstica, nem dócil, nem protocolar — é visceral.

Vivo a espiritualidade como quem respira: sem explicações, mas com absoluta necessidade.

Amo Deus — e sei que sou amada por Ele. Não com palavras decoradas, mas com o corpo inteiro.

Oro no quarto mais escondido, na intimidade onde o mundo não me encontra.

É nesse lugar interior, despido de aparências, que me ajoelho — metafórica ou literalmente —, não para me anular, mas para me lembrar de quem sou sem máscaras.

Deus vê-me onde eu me escondo. E mesmo assim — ama-me.

Carrego defeitos. Conheço-os. Já os enfrentei ao espelho, já lhes dei nome. O orgulho, esse velho inquilino da alma, ainda me visita.

Aprendi a reconhecê-lo quando se disfarça de coragem, quando se veste de justiça própria, quando se camufla de independência fria.

Mas não me rendo a ele.

A minha guerra é interna. E por isso é real.

Sou feita de falhas e de fé.

Sou equilíbrio instável entre razão e emoção, entre contenção e urgência, entre lógica e amor.

Sou filosofia encarnada, não como elitismo de cátedra, mas como modo de ser. Penso com as entranhas.

Sou ciência quando busco, matemática quando analiso, poesia quando sinto. Sou todas essas linguagens — e nenhuma me possui.

Vivo com intensidade, mas sem ruído. Com paixão, mas sem histeria. Com lucidez, mas sem frieza.

Sou livre. E essa liberdade é pensada, assumida, sofrida.

Sou responsável pelas minhas escolhas. Recuso o papel de vítima domesticada. Recuso o conformismo paralisante.

A liberdade, para mim, não é fazer o que quero — é fazer o que é verdadeiro, mesmo quando dói.

Amo profundamente, mas não ingenuamente.

O meu amor tem critérios. O meu perdão não é amnésia — é transfiguração.

O meu altruísmo tem coluna vertebral.

A minha generosidade tem discernimento.

A minha compreensão tem limites — porque até a compaixão precisa de estrutura.

A esperança que cultivo não é optimismo tolo. É resistência. É escolha lúcida de não desistir.

Acredito na redenção, mas não como milagre mágico — como trabalho de alma, como construção diária, como acto deliberado de renascer em mim.

Não sou perfeita — nem aspiro a ser. Aspiro a ser inteira.

Aspiro a viver sem fragmentos, sem falsidades, sem fazer de conta.

E quando falho — e falho com frequência — volto-me para dentro. Encontro-me com Deus. Falo com Ele como se fala com quem conhece todos os nossos abismos.

Não me julga. Escuta. Sabe. E ama.

Sei que Ele me ama. E Ele sabe que O amo.

Este é o meu manifesto.

Sou corpo — mas também alma.

Sou razão — mas também fé.

Sou fragilidade — mas também fortaleza.

Sou luz — e conheço a minha sombra.

E nesta tensão criadora entre o que sou, o que fui e o que estou a tornar-me, vivo. Verdadeiramente. Intensamente. Coerentemente.

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