"Limpar"

 A vida, tal como um quarto encerrado durante anos, acumula poeiras invisíveis, carregadas de memórias que já não nos servem, mas às quais, por uma qualquer teimosia silenciosa, ainda nos agarramos. Há momentos em que se torna urgente essa "limpeza" interna, esse despojamento necessário para que possamos caminhar sem o peso das sombras do passado. Não é simplesmente uma questão de organização emocional; é uma verdadeira catarse, uma libertação que exige não apenas coragem, mas também uma profunda honestidade connosco mesmas.

Fechar portas... Que metáfora imensa e, ao mesmo tempo, tão assustadora! Porque, ao trancar uma porta, sei que também estou a abrir mão daquilo que poderia ter sido, dos ecos de histórias mal resolvidas que ainda ressoam no fundo da minha alma. A verdade é que essas narrativas, por mais que tenham significado num outro tempo, num outro eu, já não se encaixam na moldura da minha vida atual. Persistir em segurá-las é como carregar tralhas antigas, esperando que, por algum milagre, voltem a ter utilidade. Mas não voltarão.

Reconhecer isso, porém, é um processo doloroso. Corta-se o fio invisível que nos liga ao que fomos, ao que vivemos, e, com esse gesto, selamos o destino de algo que, mesmo que não mais nos pertença, tinha ainda um resquício de valor emocional. É curioso como, muitas vezes, a nossa hesitação em encerrar capítulos já não tem a ver com o apego ao conteúdo dessas histórias, mas ao hábito de as ter presente, de as evocar como um consolo vazio. Há uma segurança no conhecido, mesmo que esse conhecido seja tóxico ou irrelevante.

No entanto, para crescer, para evoluir, é preciso uma dose de severidade. Somos artesãs de nós mesmas, e há momentos em que se requer o corte preciso e firme do que já não serve. Eu percebo agora, com uma clareza pungente, que arrastar o passado adoece o presente e contamina o futuro. Há relações, sonhos, versões de mim mesma que já não têm lugar na minha nova etapa. E isso não faz de mim insensível. Pelo contrário, esse reconhecimento exige uma sensibilidade ímpar. É um sinal de maturidade, de autoconhecimento, de uma íntima compreensão do que realmente sou, para além do que me disseram que devia ser, para além dos papéis que me atribuíram ou que eu mesma assumi cegamente.

Digo isto com toda a gravidade de quem finalmente entendeu que, às vezes, o capítulo já se encerrou, e nós somos as últimas a saber. Ficamos apegadas a palavras já lidas, a frases já gastas, a histórias cujo desfecho já aconteceu, mas que, por medo ou teimosia, insistimos em manter abertas. Mas eis a grande verdade: uma porta fechada não é o fim. Pelo contrário, é o início de um novo caminho, uma página em branco pronta para ser escrita com uma sabedoria renovada.

E, assim, com cada fecho de porta, com cada capítulo que deixo para trás, sinto-me mais leve, mais livre. O que antes era um fardo invisível transforma-se num espaço aberto, vasto, onde cabem novas possibilidades, novos sonhos. Não é um processo isento de dor, mas é uma dor necessária, uma espécie de purificação. E, ao fim de tudo, sei que, ao deixar para trás o que já não me pertence, estou, na verdade, a fazer as pazes com quem sou agora.

E quem sou agora? Sou o produto das histórias que me construíram, mas, acima de tudo, sou a criadora da narrativa que escolho escrever daqui em diante. E essa narrativa não precisa carregar o peso de capítulos desnecessários. Que se encerrem as histórias antigas. Estou pronta para o novo.







Mensagens populares deste blogue

Ousadia Incompreendida

O Corpo Não Mente

Reflexão -Quando se diz tudo, em silêncio também.