Acordar em paz

 Hoje, acordei com uma paz tão rara quanto inesperada. Não que o universo tenha de repente encontrado simpatia por mim, mas por algum motivo, a ansiedade habitual não estava lá, e senti-me suspensa num momento perfeito. Lá estava eu, deitada na cama, observando a luz suave da manhã, num silêncio quase respeitoso. E, só por um instante, tudo fez sentido. Por um breve momento, aquilo que me atormenta – as contas, as tarefas, os compromissos, as queixas que me chegam por e-mail e até as desilusões que a vida me reserva – pareceu insignificante. Por um instante, existi apenas eu, em paz.

Não é que tenha havido algum milagre de organização ou que o caos da minha rotina familiar tenha encontrado uma nova ordem. Continuo a ser a mesma mulher, rodeada das mesmas urgências e inquietações. Sou mãe de dois filhos, cada um numa fase da vida que me desafia de maneiras diferentes: o meu menino de nove anos, cheio de energia e travessuras, e a minha filha de vinte e um, que já é uma mulher, mas que ainda vive frequentemente no nosso lar. O meu marido é um companheiro inestimável, que me apoia em muitas das minhas lutas diárias, mas ele não participa das reuniões da Eucaristia ou da catequese; essa é uma jornada que percorro sozinha.

Hoje, enquanto meditava sobre a paz que sentia, não pude evitar que as memórias de uma amizade que se tornou tóxica voltassem à minha mente. Alguém que considerei "amiga", uma confidente a quem confiei os meus receios, transformou-se num verdadeiro pesadelo. Essa pessoa, que um dia parecia estar ao meu lado, apunhalou-me pelas costas, como se as lembranças de uma suposta amizade sincera fossem apenas sombras. O que poderia ser uma relação de apoio e cumplicidade tornou-se um mar de desilusão, traição e acusação.

O que mais dói é a traição em si, mas o que me transforma o dia a dia num verdadeiro pesadelo são os e-mails que me envia. Centenas de mensagens recheadas de críticas e comentários depreciativos, cada uma mais amarga do que a anterior. São queixas que, em vez de me empoderar, tentam me fazem sentir pequena e insegura. Foi doloroso aceitar que aquela que um dia foi uma "quase" amiga se tornara uma fonte de angústia na minha vida. Não entendo como alguém pode mudar tanto, como pode deixar-se levar pela amargura a ponto de querer ferir outra pessoa.

Nestes momentos, é fácil deixar-se levar pelo desânimo. Como posso estar em paz quando há uma tempestade de emoções à minha volta? Mas hoje, numa dessas raras epifanias, percebi que não controlo o futuro, nem as ações dos outros. A desilusão com essa "quase" amizade fez-me entender, dolorosamente, que não podemos moldar a vontade alheia, nem resgatar relações que se tornaram tóxicas. E, assim, decidi parar de tentar. As minhas respostas para os e-mails brejeiros tornaram-se nulas, e a distância que estabeleci foi uma forma de proteger o meu coração.

Na verdade, essa paz que experimentei hoje pode ser o resultado de ter deixado ir o que já não me serve. Não se trata de uma vitória sobre a desilusão, mas sim de uma aceitação de que a vida nem sempre é justa e que, por vezes, as pessoas que gostamos se tornam as mais dolorosas de lidar.

Em meio a toda essa confusão emocional, ainda consigo sentir uma genuína gratidão pelas coisas que me cercam. Olho para a minha família e vejo o que realmente importa. O meu marido, com a sua presença tranquila, é um suporte inestimável. Ele pode não acompanhar-me nas minhas reuniões de Eucaristia, mas está sempre presente quando mais preciso. Ele é o meu porto seguro, o meu aliado na vida.

Os meus filhos, por outro lado, são as luzes que iluminam os meus dias. O meu filho de nove anos, com a sua energia infinita e curiosidade insaciável, traz alegria ao nosso lar. A cada risada, a cada brincadeira, ele recorda-me da importância de viver o presente, de esquecer os aborrecimentos e aproveitar os momentos simples. Já a minha filha, agora uma jovem adulta, traz uma profundidade única à nossa relação. Conversas sobre os desafios da vida adulta tornam-se cada vez mais frequentes, e isso, apesar das desilusões que me cercam, é uma fonte de força.

Hoje, enquanto desfruto deste raro momento de paz, percebo que a incerteza é parte do nosso caminho. O futuro é uma incógnita, e não posso prever o que a vida ainda me reserva. Talvez amanhã eu enfrente novamente os desafios da traição, as críticas, acusações, queixas, difamações e os e-mails que corroem a minha serenidade. Mas hoje, posso aceitar que não terei sempre respostas, que nem todas as pessoas são sinceras e integras e estão destinadas a durar e que o meu papel é focar no que realmente importa.

À medida que a casa acorda e o dia se torna uma nova corrida, permito-me guardar este momento de paz. Sei que a vida voltará ao seu ritmo frenético, que as demandas do lar me exigirã, que o meu filho pedirá atenção e que a cadela esperará o seu passeio. Contudo, neste instante, onde a serenidade impera, sinto-me grata por ter uma família que me apoia e que, mesmo nas desilusões, me ensina a importância de permanecer firme.

A vida pode ser imprevisível e, por vezes, dolorosa, mas hoje, por um raro milagre, estou em paz. E essa paz, ao contrário das traições e das críticas, é a única constante que desejo abraçar. Porque no fim, são esses pequenos momentos, as relações verdadeiras e a força da minha família que realmente importam.


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