Kintsugi
Eu sou como uma peça de cerâmica que já se partiu inúmeras vezes. As marcas que carrego não são apenas cicatrizes, mas narrativas, capítulos de uma história feita de quedas e recomeços. Durante muito tempo, vivi com a mentalidade de esconder essas fissuras, como se apagá-las pudesse apagar a dor ou o fracasso que as causaram. Quanta ingenuidade a minha, não? Era como negar que a vida havia-me tocado, transformado e moldado. Era como tentar ser inteira novamente sem reconhecer a riqueza da experiência que trouxe-me até aqui.
Mas, então, descobri algo profundamente transformador: o conceito japonês de Kintsugi, a arte de reparar o que está quebrado com ouro, de dar valor ao que foi reconstruído, não apesar das suas falhas, mas precisamente por causa delas. Essa filosofia ressoou em mim como um grito de liberdade. Afinal, por que esconder o que faz-me única? Por que negar as veias douradas que formaram-se nos momentos em que decidi, contra todas as probabilidades, pegar os pedaços de mim mesma e reconstruir algo novo?
Aprendi, aos poucos, a olhar para essas cicatrizes com outros olhos. Elas não são só marcas do que perdi, mas símbolos do que recuperei. São a prova de que, mesmo quando a vida quebrou-me, tive coragem de juntar os cacos, de mergulhar na dor, na luta, e de emergir com algo mais belo do que antes. Cada fissura reparada é um traço de ouro que desenha no meu ser a coragem que eu não sabia possuir.
Reconheço, porém, que não foi um processo fácil. Cresci numa cultura que ensinou-me a esconder as fraquezas, a mascarar os defeitos e a apresentar ao mundo uma versão polida, impecável e inatingível de mim mesma. Vivemos rodeados por uma sociedade que idolatra a perfeição, que teme o erro e que despreza o fracasso. Isso aprisiona-nos. Obriga-nos a ocultar o que somos de verdade, a varrer para debaixo do tapete tudo o que não se encaixa no molde estreito do aceitável. E, com isso, negamos nossa própria humanidade.
Quantas vezes olhei para as minhas cicatrizes — físicas, emocionais e espirituais — com repulsa ou vergonha. Como se elas fossem a confirmação de que eu havia falhado. Mas, com o tempo, percebi que essas marcas são, na verdade, medalhas de uma guerra que travei e venci. São as veias douradas da minha história, a prova de que, mesmo diante do sofrimento, escolhi viver, crescer e transformar.
Eu sonho com um mundo que olhe para as cicatrizes de todos nós como o povo japonês olha para uma peça restaurada pelo Kintsugi. Sonho com uma sociedade que valorize as imperfeições, que celebre os recomeços, que enxergue na dor a possibilidade de beleza e no fracasso a semente da vitória. Quero que as minhas próprias marcas inspirem os outros a aceitarem as suas, a exibi-las com orgulho, como sinais de força e resiliência. Quero viver num mundo onde a perfeição deixa de ser uma máscara sufocante e dá lugar à autenticidade brilhante que só as imperfeições podem trazer.
Hoje, olho para mim mesma com novos olhos. Sei que não sou perfeita, mas também sei que não preciso ser. Sou o que sou porque me quebrei e me reconstruí. As minhas falhas e derrotas, longe de me diminuírem, enriqueceram-me. Cada uma das minhas veias douradas conta uma história de superação, e cada uma delas faz parte de quem sou.
Seja na dor ou na alegria, na queda ou no recomeço, continuo a ser moldada. E assim seguirei, aceitarei cada nova fenda como uma oportunidade de renascer. Afinal, o verdadeiro valor não está em nunca se partir, mas em ter coragem de transformar-se em algo ainda mais belo, ainda mais forte, ainda mais humano. E eu sou essa peça de cerâmica dourada. Sou um mosaico de imperfeições que brilha com a luz da vida que nunca desistiu de si mesma.