Dou por mim...

 Dou por mim a ser tomada por um ímpeto quase irreprimível de escrever. Escrever sobre tudo o que atravessa-me, como se a ponta dos dedos fosse a última ponte para libertar o que o coração não consegue conter. Falo dos defeitos que vejo nos outros, e sobretudo em mim mesma; dos desafios que todos enfrentamos – uns com coragem quase heroica, outros com a hesitação que só o medo pode justificar. Mas, quando chega o momento de os partilhar, algo prende-me. Não é vergonha, nem mesmo insegurança. É como se a exposição fosse uma ferida que escolho não abrir.

Dou por mim a narrar os dias que vivi, as vitórias que celebrei, os momentos que desenhei com os meus filhos, o meu marido, os meus amigos. A alegria de um sorriso partilhado, o peso das lágrimas que também aconteceram. Mas não os partilho. Guardo-os como se fossem relíquias, preciosidades que só eu posso entender, porque só eu as senti na sua totalidade. As palavras ficam, mas a voz que as amplifica cala-se.

Dou por mim a mergulhar nas reflexões mais profundas, nas memórias mais intensas, nas aprendizagens mais dolorosas. Escrevo sobre as superações que moldaram-me, pequenas vitórias que poderiam parecer insignificantes aos olhos de outros, mas que para mim são montanhas escaladas com as mãos nuas. E mesmo assim, não o faço. Não exponho. Não partilho. As palavras, tão claras na mente, permanecem prisioneiras do silêncio.

Dou por mim a escrever sobre Deus. Sobre a imensidão de Jesus Cristo e a ternura implacável da Virgem Maria. Sobre a fé que ora abraça-me, ora desafia-me a ser maior, mais firme, mais crente. Sobre as vezes em que duvidei, chorei, pedi, e fui ouvida – ou não. Mas guardo tudo para mim, como se profanar essa intimidade sagrada ao mundo fosse roubar-lhe a pureza.

E escolho. Escolho cuidadosamente o que pode ser publicado, o que pode escapar ao escrutínio da minha própria sensibilidade e da dos outros. Escolho palavras que não firam, que não pesem, que não carreguem em si a capacidade de desestabilizar. E mesmo assim, apesar desta escolha, troco de email. Bloqueio números. Subtraio presenças e somo ausências. Redesenho percursos, reprogramo lugares, recalibro escolhas. Onde vou, onde paro, quem deixo aproximar-se.

Não sei se é medo ou instinto. Sei apenas que esta cautela não é uma prisão, mas também não é liberdade plena. Vivo entre estas linhas por escrever, como quem anda num fio invisível entre o ser e o revelar-se. Talvez um dia publique tudo o que guardei. Talvez um dia tenha coragem de deixar que outros leiam, vejam, sintam, não pensem que tem um destinatário específico. Mas, por agora, dou por mim aqui – a escrever. Só a escrever.







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