Eu não consigo...

 Eu não consigo conceber, em toda a minha estrutura íntima, a ideia de brincar com a dor do outro. É como se houvesse uma espécie de repulsa interna, um freio inviolável que me impede de encontrar satisfação, riso ou leveza no sofrimento alheio. Talvez porque eu mesma conheça o peso dos desertos que cada um carrega, aqueles desertos silenciados, queimados pela aridez das lutas internas e das feridas não cicatrizadas. São espaços vastos, intransponíveis, onde cada pedaço de nós é posto à prova, onde a sobrevivência se confunde com o sufoco e o silêncio ecoa como gritos abafados.

Há quem não perceba ou escolha ignorar esses desertos alheios, preferindo achar graça nas fragilidades e nos tombos dos outros. Mas a mim, a simples ideia de somar ao fardo de quem já sofre parece desumana, quase grotesca. Porque, ao fim e ao cabo, vejo-me ali. Há um reconhecimento mudo, uma identificação com aquela dor que, mesmo não sendo minha, ainda me toca como se o fosse. Não é que me falte sentido de humor ou a capacidade de rir dos equívocos e ironias da vida – isso eu tenho. Mas há uma linha sutil, invisível, que separa o riso espontâneo e a zombaria insensível; uma linha que, para mim, é sacrossanta.

E por quê? Porque, no outro, vejo a mim mesma. Na dor do outro, encontro traços da minha própria vulnerabilidade, dos meus próprios abismos internos. Não é que eu seja uma santa, que me comova com cada infortúnio que vejo – também caio em tentações de julgamento, de impaciência, de incompreensão. Mas, ao fim, há sempre algo que me puxa de volta para essa espécie de compreensão mais profunda. É uma percepção quase visceral de que todos nós, em algum nível, somos feitos das mesmas substâncias, dos mesmos medos e do mesmo desejo de sermos entendidos e acolhidos.

Acredito que, quando opto por respeitar a dor do outro, faço-o não só por bondade ou por compaixão altruísta, mas por um impulso de sobrevivência emocional. Respeitar essa dor é um modo de proteger a minha própria humanidade, de manter vivo o entendimento de que cada um de nós caminha com pesos invisíveis. Porque, no momento em que eu permito que a crueldade ou a indiferença entrem no meu coração, corro o risco de me tornar cega também para as minhas próprias fragilidades. A zombaria, a indiferença, o riso fácil – são erosões da alma. Sinto que, ao poupar o outro desse fardo, estou a salvar também partes de mim mesma.

Ao contrário de outros, que parecem encontrar prazer na exposição das misérias alheias, eu escolho a lucidez dessa identificação íntima e silenciosa, essa consciência de que somos todos – de algum modo misterioso – conectados por nossos desertos. Porque, ao final do dia, o outro sou eu, e eu sou o outro. E que estranha, mas bela verdade é essa, que nos impele a sermos menos pedra e mais água.

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