Mais do que Sonhei

(crónica íntima de uma mulher inteira)


Perguntam-me, às vezes com aquele olhar de quem antecipa desilusões mansas ou frustrações bem disfarçadas:

— Realizaste os teus sonhos?

E a pergunta, aparentemente inocente, cai-me no peito como um eco antigo. Não sei respondê-la com uma frase curta. Não cabe num sim. Nem num não.

Cabe, talvez, numa vida inteira. Ou, se me permitem, neste texto.

Não, não realizei os meus sonhos.

Realizei mais. Muito mais.

Sonhar é por vezes um acto tímido, quase defensivo — um esboço da esperança, comedida, cautelosa, para não ferir o coração. Mas viver… ah, viver é outra coisa.

Viver é cair de olhos abertos no imprevisível e descobrir que há abismos que são voo.

É tropeçar no inesperado e dar-se conta de que o milagre mora onde nunca ousámos procurar.

Nunca sonhei amar assim — e muito menos ser amada como sou.

Não por falta de desejo, mas por uma espécie de cepticismo elegante, desses que nos servem de armadura. Esperava talvez alguma paixão fugaz, intensa como um incêndio breve. Mas chegou-me o amor inteiro. Chegou devagar, mas ficou.

Não veio com promessas feitas de fogo-de-artifício — veio com raízes e com asas.

Com gestos pequenos, com silêncios cúmplices, com presença nas horas em que o mundo escurece.

E entendi que amar é, acima de tudo, persistir: na ternura, no riso partilhado, na construção contínua.

Ser mãe? Nunca constou dos meus planos.

Era coisa que pertencia aos outros, aos que falavam de instinto e de relógios biológicos. Eu não via em mim esse chamamento.

E contudo, um dia, fui chamada. E respondi.

A maternidade não me moldou — dilatou-me.

Desatou em mim uma torrente de amor feroz e vulnerável, que me ensinou o mundo outra vez. Agora vejo com os olhos dela.

Ser mãe é ver o tempo passar de dentro. É fé viva, diária, ardente — uma fé que me abana e me levanta, que me dói e me salva.

Acompanhar a minha mãe na sua última travessia foi a lição mais dura — e mais luminosa.

Não sonhei com isso. Sempre fugi da ideia da sua partida. Mas estive. E, no estar, fui inteira.

Ali, entre gestos finais e silêncios definitivos, compreendi o que é o amor incondicional, aquele que já nada exige.

A despedida ensinou-me a presença.

Foi no fim que aprendi o valor do princípio. E foi nessa dor, sem enfeites, que me tornei mais mulher — mais filha, mais humana, mais alma.

Nunca sonhei com uma família estruturada.

Parecia-me utopia. Sonhava com independência, não com pertença.

Mas aconteceu.

Uma família feita não de perfeição, mas de escuta. De paciência verdadeira, de afecto demonstrado, de respeito que não precisa de vigilância.

Somos casa uns nos outros. Imperfeitos, sim. Mas reais. Humanos até ao osso.

E sim, nunca sonhei participar numa missa — mas participo.

Não por hábito nem obrigação, mas porque ali, contigo, e com Deus, com Jesus, sou tocada por uma paz que me desarma.

É mais do que rito — é encontro.

Não sei se é fé, se é entrega. Mas sei que é verdade.

Ali, entre cânticos e silêncios, entre a luz do altar e o peso leve das palavras ancestrais, sinto que há algo maior que nós — e que nos inclui.

É uma graça inesperada — e profundamente real.

E sim, descoordenono-me.

Quando alguém fere os meus valores, os meus princípios mais íntimos — aqueles que me servem de esqueleto moral — perco o rumo, o prumo e até a sintaxe.

E uso esta palavra — “descoordenono-me” — porque nenhuma outra me basta.

Não existe em dicionário algum, mas existe em mim.

É como se as sílabas tropeçassem umas nas outras para mostrar que até o verbo se desorganiza quando o que sou é violado.

É um grito camuflado de neologismo.

Uma palavra que, por não ser oficial, se atreve a dizer o que as outras não sabem.

Cicatrizei feridas que pensei eternas.

Não por milagre. Por insistência.

Por fé: não a fé dos dogmas, mas a fé das mãos dadas, do continuar apesar de.

Fé na possibilidade de luz mesmo onde só há escombros.

Hoje, olhando para trás, não vejo um percurso recto nem um conto de fadas.

Vejo um mapa cheio de desvios, buracos, atalhos improváveis e beleza indizível.

Não sou uma vitrina de êxitos — sou um mosaico de fragmentos colados com tempo, com lágrimas e com ouro.

O que me partiu, poliu-me.

O que me doeu, ensinou-me.

E tudo, tudo, serviu.

Por isso, se me perguntam se realizei os meus sonhos, respondo com um sorriso e um suspiro:

Não. Realizei o que nem ousei sonhar.

E é isso, meus caros, que faz da vida não um plano — mas um milagre.

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