Diário de uma Sexta-Feira Invisível (Mas Cheia de Gente)

 Durante muito tempo, escrevia com o coração escancarado. Não havia filtro, nem receio — partilhava tudo: sentimentos, vivências, dores, conquistas, pessoas que amava, respeitava, cuidava e até aquelas que me desiludiam. Escrevia como quem respira: sem pensar muito, porque era natural, necessário, quase vital. O meu blog era uma espécie de janela aberta para o mundo — um diário público onde cada palavra era reflexo de mim.

Mas aprendi da pior forma que nem todos leem com o coração com que escrevemos. As palavras, quando saem de nós, ganham vida própria — e por vezes são mal interpretadas, usadas contra nós, torcidas até doerem. Aprendi que nem sempre a verdade é protegida. E que a vulnerabilidade, num mundo cínico, pode ser uma arma apontada.

Hoje continuo a escrever. Todos os dias. Mas partilho com mais cuidado. Como diz o meu filho, com um ar traquina e olhos brilhantes: “o diário da mãe”, “a terapia” ou, com um sorriso cúmplice, “as nossas aventuras”. Ele vê, percebe, sente — e talvez compreenda melhor do que muitos adultos o que significa guardar um pedaço de nós no papel, mesmo que ninguém o leia.

Sexta-feira. Sempre cheia. Dia de trabalho intenso. Mudei os horários — não porque tenha algo a esconder, mas porque aprendi a gostar da discrição. Há dias em que ser invisível é a minha paz. Saio cedo de casa, sem ruído, quase como um ninja urbano, e volto da mesma forma: sem rasto. A rotina não é simples. Exige elasticidade, paciência, resistência — física e emocional.

Nesta sexta, o meu filho não foi à escola. Estava doente. Ficou em casa, e eu cuidei dele como só uma mãe sabe cuidar: entre termómetros, chá de limão e mimos infinitos. Estivemos juntos até ao último minuto possível. Depois saí — não para descansar, mas para continuar. A vida não abranda só porque estamos cansadas.

Atravesso o parque, como tantas vezes, para ir até casa de uma amiga. Um hábito de fim de tarde, partilhado entre confidências e silêncios confortáveis. Mas naquele dia, antes disso, tinha ainda o compromisso mais silencioso e importante: o voluntariado. Continuo a fazê-lo com o mesmo amor e sentido de missão de sempre — mesmo quando estou cansada, mesmo quando ninguém vê.

Estava a fechar a loja solidária quando uma utente, com voz baixa e um certo receio nos olhos, perguntou se ainda a podia atender. Olhei o relógio. A loja estava oficialmente encerrada, a minha amiga já esperava, o meu filho tinha acabado de me ligar a pedir que voltasse. Tinha mil razões para dizer não. Mas uma só razão para dizer sim: ela precisava.

Disse-lhe que só tínhamos uns minutos. Se fosse rápida e eu também, resolveríamos tudo. E assim foi. Ouvi-a, orientei, ajudei. No fim, com um sorriso tímido, perguntou se podia despedir-se com um beijo e um abraço. Fiquei ali, por um segundo, parada. Há tanto tempo que um abraço não vinha com tanta honestidade.

Abracei-a. E disse-lhe o que acredito profundamente: “Somos iguais. Não sou mais, nem menos. Sei o que sente. Já estive aí.”

Ela respirou fundo. Disse “obrigada” com uma gratidão que não se diz, sente-se. E eu sorri. Não era preciso mais nada. Aquele abraço foi tudo.

Depois, corri. Literalmente. A minha amiga, que esperava há mais de meia hora, tinha preparado uma pequena comemoração para o aniversário da filha. Cheguei com o coração acelerado, o cabelo em desalinho e os pensamentos a girar — mas cheguei. Estava ali. Cantei, brindei, sorri. E depois? Depois apaguei. Como quem viveu três dias numa tarde.

**

Poderia não escrever nada disto. Poderia guardar, como tantas vezes guardo. Mas hoje, deixo aqui estas palavras — não para me mostrar, mas para lembrar-me (e talvez lembrar-te) que a vida é feita destes momentos improváveis: um filho doente, uma amiga que espera, uma utente que precisa, um abraço que salva, um aniversário que nos obriga a parar e um silêncio ao fim do dia que sabe a vitória.

Escrevo, sim. Ainda escrevo. Mas partilho quando a alma pede. E hoje, a alma pediu.

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