Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo.
A Mesa que nivela, o Corpo que transforma, o Amor que permanece
Hoje é feriado — mas não é um simples dia de pausa. É um dia que suspende o tempo e nos convida a parar de verdade, não apenas o corpo, mas a alma. Celebramos a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, ou como ecoa nos corações marcados pela fé: Corpus Christi. Um dia que não é apenas para lembrar, mas para presenciar — porque nesta festa não evocamos apenas um gesto simbólico de Jesus, mas celebramos o mistério da Sua presença real, viva, total.
Fui à missa. E, como acontece tantas vezes, saí de lá com algo que não tinha quando entrei. Para além da comunhão sagrada, levei comigo as palavras do senhor padre — proferidas com serenidade, clareza e aquele dom raro de tornar o divino compreensível sem o banalizar. A homilia foi teológica, poética e, a espaços, até levemente humorada — como só sabem fazer os que conhecem a alma humana.
Começou com uma pergunta simples e profundamente incisiva:
"Quem é que se senta à vossa mesa, em casa?"
A resposta foi imediata — e, curiosamente, silenciosa. Todos sabíamos: sentam-se os nossos. Os que amamos. A família, os amigos íntimos, os que pertencem. A mesa de casa é lugar de afecto, de selecção emocional — nem todos têm lugar. Não é quem quer, é quem queremos.
Mas eis a beleza radical da Eucaristia: o altar, a mesa de Deus, acolhe todos. Não se impõe condição social, estética, profissional ou moral. A mesa da Igreja não pergunta quem és, quanto ganhas ou o que fizeste. Pergunta apenas se tens fome de Deus.
O padre, com a leveza de quem sabe que a verdade se diz melhor com imagens, ofereceu-nos uma analogia inesquecível:
“Na igreja, os bancos são todos iguais. E todos ficamos com o rabo à mesma altura do chão.”
Desculpem a franqueza — ou melhor, não peçam desculpa. Porque essa horizontalidade corporal é também espiritual. Na igreja, estamos lado a lado, em pé de igualdade. Seja o doutor de gravata ou o idoso de boné, todos nos ajoelhamos, todos nos levantamos, todos comemos do mesmo pão. A Eucaristia não conhece vaidades. Ela nivela. Ela une. Ela transforma.
"Isto é o meu Corpo" — não símbolo, mas verdade
No centro da celebração de hoje está uma afirmação que há dois mil anos desconcerta o mundo:
“Isto é o meu corpo.”
Cristo não disse “Isto representa”, nem “Isto simboliza”, nem “Finjam que é”. Disse simplesmente “É” — e esse verbo mudou tudo. Um verbo que não permite distâncias: a Eucaristia não é uma encenação, é um acontecimento.
A Igreja, com humildade teológica e audácia espiritual, sempre afirmou que Cristo está real e verdadeiramente presente no pão consagrado. O milagre não está nos olhos que vêem, mas no coração que crê.
E é aqui que entra o imenso Santo Agostinho, com a sua inteligência mística e a sua linguagem que ainda hoje nos move. Dizia ele aos catecúmenos da sua diocese:
“Se vós sois o corpo de Cristo e seus membros, o que está sobre a mesa do Senhor é o vosso próprio mistério. Recebeis o que sois e deveis tornar-vos naquilo que recebeis.”
Que afirmação sublime e desarmante! Comungar é reconhecer-se no Corpo de Cristo. É ser absorvido por Ele — não no sentido físico, mas existencial. O pão da Eucaristia, quando recebido com fé, não se limita a entrar em nós: transforma-nos. E aqui está a inversão mais bela da lógica humana:
“Na alimentação comum, é o alimento que se torna em nós. Na Eucaristia, somos nós que nos tornamos no alimento.”
Este não é um acto simbólico de grupo. É um compromisso real, radical, vital. Receber Cristo é aceitar ser moldada por Ele, ser enviada como Ele, ser quebrada e partilhada pelos outros, como Ele.
“Ite, missa est” — é na saída que tudo começa
A missa, durante séculos, terminava com as palavras “Ite, missa est” — expressão latina que pode ser traduzida como: “Ide, sois enviados”. Esta fórmula não é uma despedida cerimonial. É um envio. A missa não termina quando se sai da igreja — começa aí.
É fácil estar em silêncio na igreja. Difícil é amar no trânsito. É fácil partilhar o mesmo banco ao domingo. Mais exigente é perdoar na segunda-feira. A comunhão com Cristo exige continuidade no mundo. A fé não se mede pelo tempo passado no templo, mas pela qualidade da presença fora dele.
A missa é, portanto, uma iniciação a um modo de viver: viver eucaristicamente, ou seja, em entrega, em serviço, em sacrifício transformado em amor.
Humor sagrado: quando até o corpo sorri
E, já agora, permitam-me um sorriso partilhado. O tal comentário do padre sobre os bancos —
"Ficamos todos com o rabo à mesma altura do chão" —
não é apenas uma piada simpática. É uma catequese corporal, que nos recorda que, diante de Deus, ninguém é mais alto, mais digno ou mais santo por fora.
É saudável — e até teologicamente justo — sabermos rir de nós próprios, das nossas pretensões, das nossas vaidades, das nossas posturas sociais. A fé também se vive com leveza. E o riso, quando nasce da humildade, é uma forma de louvor.
Corpo de Deus, corpo nosso
Hoje, nesta solenidade luminosa, compreendi mais uma vez que a Eucaristia é um milagre silencioso e diário. É Deus que se deixa tocar, comer, amar. Não porque precise de nós, mas porque nós precisamos desesperadamente d’Ele.
E como mulher crente, pensante, encarnada nesta fé que se faz carne, afirmo com gratidão e tremor: a fé não é conceito — é Corpo.
Não é um ideal — é presença.
Não é uma teoria — é encontro.
E assim saí da missa, com o estômago cheio de céu, o coração a arder de esperança, e uma missão renovada: ser, no mundo, o que recebi no altar.
Como dizia Santo Agostinho:
Recebe o que és. Sê o que recebes.
E que os bancos da igreja, com a sua firme horizontalidade, continuem a lembrar-nos que, na fé, o que nos une não é o nome, nem a profissão, nem o passado — é o amor partilhado à mesma altura.
Amém.