A Estética do Julgamento: Uma Anatomia do Apontar
Vivemos mergulhadas num tempo de estrondosa superficialidade moral, onde o ruído substitui o pensamento e a pressa do julgamento eclipsa qualquer tentativa séria de compreensão. A sociedade contemporânea, engalanada de avanços tecnológicos e conquistas materiais, revela, contudo, uma miséria espiritual que se expressa no gesto automático de apontar o dedo, julgar, condenar. Este gesto tornou-se quotidiano, reflexo, pulsão de um mundo que perdeu a capacidade de introspecção e substituiu a empatia pela opinião, a escuta pelo veredicto, a complexidade pelo simplismo redutor.
É curioso observar como se tornou comum ouvir vozes a lamentar a perda de valores, a rarefacção da empatia, o declínio da generosidade, como se tais constatações, proferidas com um certo ar de superioridade e desencanto, fossem elas próprias actos redentores. Aponta-se a ferocidade do mundo com um certo deleite, como quem se coloca fora dele, incólume, nobre, ítalo-moralmente intacta. Fala-se da humanidade como se não se fizesse parte dela. A condenação do mundo tornou-se um ritual de purificação individual.
Mas quem são os tais seres insensíveis, cínicos, empobrecidos de altruísmo? Quem são os carrascos da empatia, os traidores da paciência, os exilados da compaixão? São os outros, claro. Nunca nós. O julgamento é sempre uma questão de alteridade. A maldade, a ignorância, a arrogância estão sempre no outro. E, assim, perpetuamos uma moral de espelho estilhaçado, onde cada fragmento reflecte apenas a parte que nos convém.
Julgar tornou-se um acto automático, quase uma necessidade fisiológica. Ao menor indício de diferença ou desvio, ergue-se o dedo, lança-se o anátema, sentencia-se com a confiança de quem acredita possuir o monopólio do bem. Uma palavra, um gesto, uma fotografia, um silêncio fora de tempo bastam para desencadear uma avalancha de opiniões, críticas, condenações. E tudo isto com uma ligeireza assustadora, como se se tratasse de um jogo, de um passatempo moral.
A gravidade desta realidade reside na superficialidade com que se exerce o juízo. Pouco importa o contexto, a história, a complexidade do outro. Não há lugar para a dúvida, para o recuo, para a espera. Vivemos numa sociedade que despreza o tempo da reflexão. A imediatez do julgamento é valorizada como sinal de assertividade, quando é, na verdade, sintoma de preguiça intelectual.
Esta pulsão julgadora tem ainda uma dimensão profundamente narcísica. Julgar é, na maior parte das vezes, um acto de auto-engrandecimento. Ao condenar o outro, afirmo-me como melhor, mais virtuosa, mais esclarecida. A falha alheia é o palco onde enceno a minha própria rectidão. E assim, com cada julgamento proferido, constrói-se uma identidade moral fictícia, frágil, mas socialmente validada.
Entretanto, o pensamento, a empatia, a escuta activa, a compreensão profunda da complexidade humana são relegados para segundo plano. Estas virtudes, que exigem tempo, silêncio, humildade e estudo, são cada vez menos valorizadas numa cultura que premeia a opinião instantânea, o alinhamento ruidoso e a indignação performativa. O resultado é uma erosão da inteligência colectiva e uma infantilização do debate público.
Torna-se urgente recusar este modo de estar. Urge recuperar o valor do silêncio, da escuta, da dúvida, da espera. Urge abdicar da certeza como arma de afirmação pessoal. O verdadeiro desafio é não ceder à tentação do julgamento fácil. É resistir ao impulso de opinar sobre tudo, de reduzir o outro à sua falha visível, de transformar a complexidade em caricatura.
A verdadeira mudança não se faz com palavras inflamadas nem com moralismos de vitrina. Faz-se com actos quotidianos de compreensão, com gestos de generosidade não exibida, com esforço paciente de pensar antes de falar, de ouvir antes de responder. É neste labor invisível e exigente que reside a única revolução possível: a revolução interior.
E talvez, apenas talvez, quando deixarmos de ver no outro uma ameaça ou uma projecção das nossas frustrações, e começarmos a reconhecê-lo como sujeito pleno, falível, contraditório mas digno, possamos então reabilitar a palavra humanidade. Não como conceito abstracto, mas como prática concreta. Não como ideal inalcançável, mas como escolha difícil e quotidiana.
Porque o dedo que aponta para fora raramente tem coragem de apontar para dentro. E é exactamente aí que tudo deve começar.