Domingo, Dia do Senhor: Solenidade de São Pedro e São Paulo — Mártires, Colunas da Igreja e Mestres da Coragem Cristã

O Domingo, na tradição cristã, é o Dia do Senhor — dies Domini — consagrado à memória viva da Ressurreição de Cristo. É nesse espírito que hoje celebramos, em uníssono e solenidade, duas das figuras mais extraordinárias e fundacionais da fé cristã: São Pedro e São Paulo. Esta data, que congrega num só sopro litúrgico o testemunho de dois homens tão distintos e, todavia, tão complementares, é marcada não apenas pela recordação histórica, mas pela revisitação espiritual do seu sacrifício, da sua coragem e do seu legado como pedras vivas da Igreja.

São Pedro, de nome original Simão, era um simples pescador da Galileia quando ouviu as palavras que mudariam a sua história e a do mundo: «Segue-me». Cristo chamou-o Kēphas, que em aramaico significa «pedra», traduzido para o latim como Petrus, Pedro. Este nome foi-lhe dado não por acaso, mas por profecia, pois seria sobre esta “rocha” que Cristo edificaria a Sua Igreja. É por isso que Pedro é reconhecido, ainda hoje, como o primeiro bispo de Roma, o primeiro Papa, fundamento visível da unidade do Corpo de Cristo.

A sua morte é um testemunho supremo de fidelidade. Preso durante as perseguições do imperador Nero, Pedro foi condenado a ser crucificado. Segundo a tradição, pediu que o executassem de cabeça para baixo, por se considerar indigno de morrer da mesma forma que o seu Mestre. Este gesto resume toda a sua vida: uma entrega absoluta, temperada pelo arrependimento das suas quedas, como o seu célebre triplo negar, mas sempre reencontrada pela força da graça.

Já São Paulo, outrora conhecido como Saulo de Tarso, trilhou um caminho radicalmente diferente até ao martírio. Judeu fariseu, culto, cosmopolita e zeloso perseguidor dos primeiros cristãos, tornou-se, após a célebre experiência na estrada de Damasco, o maior missionário da fé que outrora tentara destruir. Paulo não conheceu Jesus na carne, mas conheceu-O no espírito, na revelação fulgurante que lhe abriu os olhos da alma, mesmo ao preço de lhe fechar temporariamente os olhos do corpo. Tornou-se “apóstolo dos gentios”, viajando incansavelmente pelo Mediterrâneo, fundando comunidades cristãs, escrevendo cartas que ainda hoje são alimento teológico, espiritual e intelectual para a Igreja.

A Igreja celebra a memória destes dois gigantes juntos não por mero acaso cronológico, mas porque juntos representam a totalidade da missão cristã: Pedro, símbolo da unidade e da instituição visível, e Paulo, símbolo da missão e da expansão do Evangelho até aos confins da Terra. Pedro fixa, Paulo lança; Pedro confirma, Paulo impulsiona. Ambos, porém, partilham o mesmo destino final: o martírio em Roma, sinal supremo de fidelidade ao Senhor que ambos proclamaram com a vida e selaram com a morte.

É por isso que neste dia os paramentos litúrgicos do celebrante são vermelhos. Este vermelho não é cor de triunfo terreno, mas da vitória do amor sobre o medo, do sangue derramado por Cristo e com Cristo. É o vermelho que lembra aos fiéis que a Igreja nasceu e renasce sempre do sangue dos mártires; que a fé que professamos não foi conquistada por espada, mas selada pelo testemunho corajoso dos que preferiram perder a vida a negar a Verdade.

Esta solenidade também nos recorda que os cristãos sempre foram perseguidos, desde os primeiros tempos até aos nossos dias, ainda que sob formas e contextos diversos. A história da Igreja é, de certa forma, uma história de coragens silenciosas, de resistências heroicas, de testemunhos que florescem precisamente nas horas mais sombrias. E Deus, na Sua sabedoria, não nos promete uma vida isenta de sofrimento; antes, ensina-nos a viver com coragem, a transformar a dor em oração, a provação em esperança, e a morte em semente de vida eterna.

Mas importa afirmar, com clareza e sem medo: nós, católicos, não somos crentes cegos. A fé não é submissão cega nem renúncia à razão; antes, é encontro vivo entre a razão e o mistério, é caminho que se faz de perguntas e respostas, de dúvidas e de buscas incessantes. Desde os Padres da Igreja aos grandes doutores e teólogos, sempre se compreendeu que a verdadeira fé é aquela que procura compreender — fides quaerens intellectum, como dizia Santo Anselmo. E é precisamente porque perguntamos, porque nos interrogamos, que a fé se torna madura, autêntica e profunda, não mero hábito ou tradição morta.

Pedro e Paulo são, também neste ponto, mestres luminosos: Pedro, que tantas vezes questionou o Mestre, que ousou sair do barco para andar sobre as águas, mesmo que tenha vacilado; Paulo, que debateu, argumentou e defendeu o Evangelho nas praças e nos areópagos, usando a palavra como espada do espírito. Ambos demonstraram que crer não é calar, mas procurar, pensar, discernir. Uma fé que não questiona arrisca ser superficial; uma fé que questiona enraíza-se, torna-se rocha firme que resiste às tormentas.

Celebrar Pedro e Paulo é, pois, celebrar também esta liberdade interior de quem ousa perguntar, de quem não aceita respostas fáceis, mas vai ao encontro da Verdade, mesmo quando ela desafia, desinstala e até fere. Porque a verdade cristã não teme as perguntas, antes as acolhe e purifica; e a inteligência da fé é um dom que Deus nos confia para O conhecermos melhor e O amarmos mais.

Numa perspetiva teológica mais profunda, Pedro e Paulo são também ícones de duas dimensões fundamentais da fé: a dimensão comunitária e institucional, representada por Pedro, e a dimensão missionária, carismática e profética, representada por Paulo. A Igreja vive destas duas dimensões em tensão dinâmica: precisa da estabilidade de Pedro para não se dispersar, e da inquietude de Paulo para não se enclausurar.

Hoje, enquanto mulher crente, não posso deixar de sentir que esta solenidade toca algo de profundamente humano e feminino: a capacidade de gerar vida no sofrimento, de transformar a dor em força, de permanecer firme quando tudo parece ruir. Pedro e Paulo ensinam-nos que a coragem cristã não é ausência de medo, mas fidelidade maior do que o medo. Ensinam-nos que a fé é uma peregrinação que exige queda e recomeço, pergunta e resposta, silêncio e anúncio.

Este Domingo, Dia do Senhor, recorda-nos que a Igreja é feita de pedras vivas como Pedro e Paulo, mas também de todos nós, chamados a sermos hoje testemunhas corajosas, fiéis mesmo nas pequenas cruzes quotidianas. O seu sangue, longe de ser sinal de derrota, é semente de novos cristãos, como já dizia Tertuliano. O martírio não é fim, mas cume de uma vida dada.

Por isso, neste dia solene, ergamos os olhos para estas duas colunas da Igreja e deixemo-nos desafiar: que parte de Pedro e que parte de Paulo vive em nós? Que cruz estamos dispostos a abraçar? Que Evangelho estamos dispostos a anunciar, mesmo ao preço da incompreensão ou da dor?

Que o vermelho dos paramentos nos recorde, não apenas o seu sangue, mas a chama viva do Espírito Santo que os guiou — e que também quer guiar-nos. Que, como eles, aprendamos a transformar fraqueza em testemunho, medo em coragem, perguntas em sabedoria, e a nossa vida inteira em hino de fidelidade Àquele que nos amou primeiro.

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