Às Almas que Sentem (Ou Que Fingem Bem)

Crónica para os que ainda escutam com a alma

Nunca imaginei — e digo isto com uma sinceridade que já não tem energia para maquilhar nada — que textos escritos entre uma crise de ansiedade e a lista de compras do supermercado, entre uma lágrima no caminho e o silêncio depois de desligar o telemóvel, pudessem chegar a alguém. Mas chegaram. Tocaram. Habitaram. E, segundo consta, até curaram. Não sou curandeira. Não sou terapeuta. Mal sei ser gente às vezes. Mas, aparentemente, basta ser honesta com a dor, e já se está a fazer mais do que metade do mundo.

A ironia suprema disto tudo é que nunca escrevi para “chegar” a alguém. Escrevi para não morrer engasgada. Para não me afogar nas palavras que o corpo não conseguia chorar. Escrevi para não enlouquecer no meio da normalidade fingida. E foi nesse acto desesperado, quase primitivo, de escrever com a alma em carne viva, que encontrei eco. Gente que, sem me conhecer de lado nenhum, disse: “sou eu que estás a escrever.” Como se eu tivesse invadido memórias alheias, dores partilhadas, segredos enterrados.

E depois vieram os e-mails. Meu Deus, os e-mails. De manhã, à tarde, às três da manhã, como se as palavras não tivessem relógio, mas tivessem bússola. Gente a agradecer, a contar, a pedir. Conselhos, respostas, interpretações. Ofertas de ajuda, de cafés, de telefonemas. Gente que assina com o coração na mão, como quem escreve um bilhete de despedida a um velho amigo. A diferença é que eu nunca os vi. Nunca lhes toquei. E, no entanto, conheço-os melhor do que muitos dos que me desejam bom dia todos os dias com olhos que não veem nada.

É curioso — não, é trágico — que sejam os desconhecidos os primeiros a reconhecer a nossa verdade. Não medem a dor pelo nosso diploma, pela nossa roupa, pelo carro que não temos, pela profissão que não brilha no LinkedIn. Apenas leem. E sentem. E sabem. Como se dentro deles houvesse um detector de autenticidade que já não funciona com publicidade, mas ainda vibra com palavras nuas.

É triste, sim. Mas também é profundamente bonito. Porque mostra que a alma humana, apesar de espancada pelas exigências modernas, ainda responde quando ouve outra alma a gritar. Talvez estejamos todos a morrer de sede emocional e só precisamos de alguém que nos diga: “eu também.”

A escrita — essa coisa maldita e sagrada — tornou-se a minha forma de respiração. Um acto fisiológico, quase. Escrever não é escolher palavras bonitas, não é seguir fórmulas. Escrever, para mim, é abrir a ferida devagarinho, deixar que o sangue escorra em forma de frase, e depois limpar com um ponto final. É um exorcismo. Uma libertação. Às vezes dói mais depois de escrito. Outras vezes, alivia. Mas é sempre necessário. Porque ou sai pela ponta dos dedos ou apodrece cá dentro.

E é por isso que recebo histórias que dariam filmes, séries, tragédias clássicas com trilha sonora pós-moderna. Histórias que ninguém ousa contar aos amigos, mas que me contam a mim. A mim, uma estranha do outro lado de um ecrã. Porque, de alguma forma, o texto criou ponte. Criou casa. Criou espelho. E num mundo onde quase ninguém tem tempo para parar, ver-se refletido numa frase já é quase uma epifania.

Claro que quem me conhece pessoalmente talvez não compreenda. Acham que escrevo sobre coisas “tristes demais”, “negras demais”, “intensas demais”. Dizem-me “és diferente online”. Não sou. Sou exatamente a mesma, só que sem os filtros sociais que nos obrigam a rir quando não temos vontade, a calar quando algo nos corrói por dentro. No texto, sou como sou: despida, descabelada, crua. E, paradoxalmente, é essa versão que as pessoas mais acolhem.

Agradeceram-me 150 mil vezes, dizem as estatísticas. Mas são mais. Porque não são só visualizações. São olhos que leram, almas que pararam, corações que apertaram. Cada número ali é uma história que se tocou na minha, nem que fosse por uma vírgula. E isso vale mais que qualquer prémio, qualquer notoriedade, qualquer validação externa. Porque isso é verdadeiro. E, nos tempos que correm, a verdade é um luxo. Uma raridade. Um risco até.

Neste cenário de civilização apressada, de máscaras sociais, de conteúdos feitos para consumo instantâneo e esquecimento imediato, as palavras que permanecem são as que doem. São as que rasgam. São as que ficam. Não porque agradam, mas porque abalam. E é isso que tento fazer: não agradar. Abanar. Acordar. Lembrar que sentir ainda não é crime. Ainda.

Portanto, aos que leram, aos que escreveram de volta, aos que se emocionaram, aos que disseram “sou eu nesse texto” — eu vos agradeço. Não como quem diz “obrigada pela audiência”, mas como quem diz “obrigada por me lembrar que ainda existe humanidade viva, pulsante, genuína, escondida no meio do ruído”.

Obrigada. E lamento. Por saber exactamente o que sentem.

Com ternura bruta, sarcasmo terapêutico e um leve cheiro a existencialismo,

A que escreve com a alma, porque se não o fizer, morre por dentro em silêncio.

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