O Amor como Insubmissão Radical

Vivemos num tempo em que o amor foi convertido em slogan, domesticado pelo discurso mercantil da auto-ajuda, estetizado nas vitrines digitais como um estado de bem-estar permanente, sem atrito, sem fendas. Um simulacro confortável, higienizado de risco e de transcendência. Porém, o amor — o amor autêntico, irredutível, desobediente — não se deixa encapsular por narrativas utilitárias ou algoritmos sentimentais. Ele escapa. Ele excede. Ele irrompe.

O amor é, antes de tudo, uma experiência ontológica. Não um simples estado afectivo, mas uma transfiguração do ser — como sugeria Martin Heidegger ao falar da abertura ao "ser-no-mundo" como uma entrega radical à presença. Amar verdadeiramente implica uma suspensão voluntária do ego como centro de gravidade, um descentramento que não é renúncia, mas expansão. Ao amar, não nos anulamos: abrimo-nos. Não nos dissolvemos: dilatamo-nos.

Tal como em Emmanuel Levinas, que via no rosto do outro a origem da responsabilidade ética, o amor verdadeiro é uma ética do reconhecimento do outro como irredutivelmente outro — jamais extensão de mim, mas um mundo autónomo cuja alteridade devo acolher sem querer possuir. O amor, nesta perspectiva, é o contrário da fusão romântica: é, antes, um gesto de infinito cuidado pela distância.

Essa dilatação do ser não ocorre sem custo. O amor exige um abandono meticuloso das nossas defesas identitárias, das couraças que a vida se encarrega de forjar à força de desilusões e sobrevivência. Como propunha Simone Weil, amar é "descentramo-nos de nós mesmos" — um esvaziamento voluntário do ego para que o outro possa habitar-nos. E fá-lo com uma gentileza tão implacável que seria crueldade, não fosse ternura.

Em termos psicanalíticos, Freud via o amor como uma forma de transferência: amamos no outro aquilo que, de forma inconsciente, ressoa connosco. Mas foi Lacan quem mais radicalizou esta visão, ao afirmar que “amar é dar o que não se tem a alguém que não o quer”. O amor, nesta leitura, é sempre atravessado pela falta, pela incompletude, pelo desejo impossível de completar-se através do outro. E, no entanto, é precisamente nesta impossibilidade que reside a beleza trágica do amor.

Contrariamente à ideia romântica que o reduz a afecto doce ou idealização narcísica, o amor é muitas vezes um exercício de contenção, de escuta, de alteridade radical. Como escreveu Clarice Lispector, “amar é cansar-se de estar só: é uma covardia, uma ousadia, uma hipocrisia”. Há nessa frase uma verdade mordaz: amar é simultaneamente acto de coragem e de fraqueza, de entrega e de medo — um paradoxo vivo que não se resolve, apenas se habita.

Amar é permitir que o outro seja — e não apenas ser amado na medida em que ele nos confirma ou nos serve. Esta ética do amor implica uma renúncia ao poder: o poder de controlar, de modelar, de possuir. Quem ama de verdade abdica do domínio para entrar na dança do risco. Erich Fromm, em The Art of Loving, defendia que o amor não é um sentimento espontâneo, mas uma arte que exige prática, disciplina, paciência e humildade. Amar é um exercício contínuo de descentramento, não um estado passivo de encantamento.

E há ainda um amor mais esquecido, mais radical, mais difícil: o amor por si mesmo. Não aquele que se reveste de narcisismo travestido de auto-cuidado, mas o amor que se exerce como fidelidade ao que somos, com todas as imperfeições e contradições. Tal como escreveu Carl Jung, “o que não enfrentamos em nós acabamos por encontrar como destino”. O amor-próprio, nesse sentido, é o primeiro gesto de responsabilidade: não é indulgência, é compromisso.

O amor, nas suas manifestações mais profundas, ensina-nos a arte da simultaneidade: manter o coração aberto mesmo quando fere, confiar mesmo quando não se compreende, dar mesmo sem garantias de retorno. E é nesse território de incerteza que reside a sua força. O amor, para ser verdadeiramente amor, exige risco. Exige fé — não cega, mas lúcida. Exige entrega — não passiva, mas activa.

Também a literatura o compreendeu profundamente. Rilke, nas suas Cartas a um Jovem Poeta, escreve que “amar é uma tarefa para dois solitários que se guardam, se protegem e se saudam”. Amor, aqui, não é simbiose — é vigilância mútua da liberdade. Pessoa, no seu fingimento lúcido, escreve que “amo tudo o que foi, tudo o que já não é, a dor que já não me dói, a antiga e errada fé”. O amor, nesse registo, é memória sublimada, distância transformada em arte.

E por fim, talvez devamos regressar a Hannah Arendt, quando ela escreve que “o amor, por ser apolítico, é o mais poderoso dos afectos humanos”. Apolítico no sentido em que recusa o cálculo, a conveniência, a instrumentalização. O amor é o lugar onde nos despimos de todas as estratégias — e, por isso, é também o lugar onde podemos finalmente ser.

Amar é, pois, um acto revolucionário. Uma recusa do cinismo, uma denúncia do vazio, uma insurreição contra a indiferença. É escolher, todos os dias, tocar o outro com verdade. E ser tocado por ele sem reservas. Como escreveu Albert Camus, “amar é, em última análise, consentir em envelhecer com alguém”. Mas não é apenas envelhecer no tempo: é envelhecer na verdade, na presença, na transformação constante.

Por isso te digo: confia no amor. Não como promessa de salvação, mas como prática exigente de humanidade. Porque tudo o que o amor toca — com a sua inteligência sensível, com a sua ternura intransigente, com a sua luz indomável — não se torna perfeito. Torna-se vivo.

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