As Santinhas do Story: Evangelho Segundo o Like
Hoje, falar com alguém ao telemóvel pode ser um acto de arqueologia emocional. A minha prima, do outro lado da linha, mandou uma daquelas frases que se alojam no peito como uma farpa. E eu, com a mente em ebulição — uma espécie de Chernobyl criativa —, escrevi este texto. Não por vaidade. Por higiene mental. Porque o mundo está doente. Espiritualmente intoxicado. E alguém tem de dizer a verdade, mesmo que doa.
Vivemos tempos onde toda a gente quer ser alguém — mas não alguém comum, não. Alguém que se destaca. E como já ninguém quer trabalhar com o suor da testa (cuidado com o botox), então opta-se por caminhos mais... etéreos. Já não se busca santidade pela renúncia, mas pela ostentação. Já não se jejua, limpa-se o karma. Já não se sofre em silêncio, agora faz-se reels a chorar.
E se não for possível ser canonizada, ao menos que se seja uma pastora, uma bruxa, uma guia espiritual com ascendente em peixe e tenda montada no Instagram. O sofrimento virou uma estética. O misticismo, uma performance. A fé, um produto com link afiliado.
Mas vamos parar um pouco. Respirar fundo. E encarar o elefante branco no templo.
Jesus não escolheu mulheres para apóstolas.
E não foi por misoginia. Não foi porque não apreciava as mulheres. Não. Jesus, na sua pedagogia divina e perfeita, reconheceu o papel precioso, singular e insubstituível da mulher na sua missão — mas não como pastoras. Nunca como condutoras de rebanhos espirituais. Maria, sua Mãe, teve um lugar mais alto do que todos os apóstolos juntos. Mas não pregou. Não fundou igrejas. Não liderou assembleias. Ela gerou o Verbo. Calou-se onde todos falavam. Permaneceu de pé junto à cruz quando todos fugiram. E isso, para uma sociedade como a de hoje, onde tudo é exibicionismo e ruído, é incompreensível.
Mas isso não impede o circo.
Hoje temos mulheres que se auto-ungem em óleos essenciais e proclamam ser pastoras, profetisas, líderes espirituais. São pastoras de si mesmas. Do próprio ego. Dos próprios traumas não tratados transformados em produto. E ali estão, sentadas no tripé, com a câmara num ângulo favorecedor e uma aura falsa desenhada por filtros: "O universo quer que tu brilhes, mana."
Não. O universo não quer nada. E Deus, menos ainda, quando vê a fé transformada num espetáculo de vaidade.
Estas mulheres não querem salvar almas. Querem salvar-se do anonimato. Porque hoje em dia, o inferno já não é fogo eterno. É irrelevância. E a santidade já não se mede por virtude, mas por alcance. Não se dá a outra face, dá-se o link na bio.
E eu, que vivi, que me perdi, que me arrastei por desertos interiores, olho isto com uma mistura de horror e tristeza. Sou uma mulher com a mala arrumada. Isso não significa estabilidade. Significa que já fui. Já voltei. Já desisti. Já recomecei. E sei a diferença entre servir a Deus e servir-me d’Ele.
Fazer-se pastora não é um acto de empoderamento. É uma inversão da ordem. Uma usurpação de função. É como um cirurgião ser substituído por alguém que viu dois episódios de "Anatomia de Grey" e diz sentir “intuitivamente” como funciona o corpo humano. Só que neste caso, as vítimas não morrem do corpo. Morrem da alma.
E a culpa? Não é só delas. É nossa também. Porque assistimos, aplaudimos, partilhamos. Porque a ignorância agora tem um verniz esotérico e vende bem. Porque preferimos uma “cura energética” com cristais cor-de-rosa do que enfrentar a verdade dura: que a salvação custa. Que a fé exige. Que o caminho é estreito.
Queremos soluções rápidas para feridas profundas. Oráculos em vez de oração. Mantras em vez de mandamentos. E o mais triste? É que tudo isto se veste com uma capa de espiritualidade feminina, quando na verdade é só uma versão moderna da velha serpente: "Sereis como deuses."
Mas nós não somos deusas. Somos mulheres. Com sangue, com lágrimas, com raiva, com pecado. E é aí que está a beleza. Na fragilidade, não na ilusão. Na busca, não na afirmação vazia. Eu não quero ser santa de Instagram. Quero ser salva. Mesmo que isso me custe tudo. Porque ser mulher não é ser apóstola. É ser aquilo que Deus quis: carne habitada por mistério. E isso já é tanto.
Enquanto isso, elas continuam. Dançam com tambores. Fazem rituais lunares. Chamam-se umas às outras de "irmãs cósmicas". Fazem retiros pagos com temas como "A tua vagina como templo sagrado". E eu olho. E não sei se me rio ou se choro. Talvez faça os dois. Comédia negra, afinal, é isto: rir com dor. Rir do absurdo. Rir da desgraça do mundo que se perdeu de Deus, mas acha que se encontrou a si mesmo.
E eu, com a mala arrumada, sigo. Sem púlpito. Sem palco. Sem seguidores. Mas com alma. Com a esperança de Maria e a lucidez de Madalena. Sabendo que a única coisa que me aproxima do sagrado... é o arrependimento.
Eu sou pecadora.
Não de rótulo. Não de catálogo espiritual nem de hashtag de aceitação pessoal. Pecadora verdadeira, das que se ajoelham com vergonha e raiva, das que choram com dentes cerrados e os olhos secos, porque já gastaram as lágrimas todas. Das que gritam por dentro em igrejas vazias, onde o eco responde mais do que Deus.
Eu sou pecadora, e passei pelo inferno.
Não aquele das pinturas, com chamas e tridentes. Não. O verdadeiro: o inferno que se instala dentro de nós quando deixamos de nos reconhecer ao espelho. Quando aceitamos menos do que merecemos. Quando somos cúmplices das nossas próprias correntes. Caminhei ao lado de Satanás e sorri-lhe, porque às vezes o demónio veste-se de consolo e chama-nos pelo nome com voz doce. Oferece-nos atalhos quando a estrada dói.
Eu caminhei com ele. Saboreei o fel do engano. Achei que era liberdade. Era prisão com laços dourados.
E ainda assim — ou talvez por isso — não sou pastora, nem bruxa, nem médium, nem taróloga, nem vidente.
Não leio cartas, porque já mal consigo ler as entrelinhas da minha própria história.
Não ouço espíritos, porque mal ouço a minha consciência sem medo.
Não invoquei arquétipos, nem activei o feminino sagrado com incenso de alfazema.
Não fiz formação online de "xamanismo contemporâneo feminino com certificado em PDF".
Não canalizo energia. Canalizo mágoa. E às vezes, amor.
Eu não sou nada.
Nada.
Digo isto sem autocomiseração. Sem drama. Sem performance. Apenas com verdade.
Sou uma filha desgraçada de Eva.
Filha de uma mulher que acreditou na promessa errada e mordeu a ilusão com fome de eternidade. E por isso sangramos todos os meses, não só do corpo, mas da alma. Porque herdámos não só a dor, mas também a sede de redenção.
E sou filha da Virgem Mãe.
Daquela que disse “sim” sem saber para o que ia. Que não precisou de palco, nem holofotes, nem discursos motivacionais. Que carregou Deus no ventre e a espada no coração. Que ficou em silêncio enquanto o mundo crucificava a única esperança que tinha.
E eu, perdida entre Eva e Maria, só quero amar.
Só isso. Amar.
Sem luzes que ofuscam. Sem audiências. Sem branding pessoal.
Amar com mãos trémulas. Com passos incertos. Amar sem precisar de provar que amo.
Amar sem “energia de alta vibração”. Sem rituais de lua cheia.
Amar com actos, não com palavras bonitas. Com sacrifício, não com frases no Pinterest.
Amar como quem serve. Amar como quem erra e volta. Amar como quem cai e não desiste.
Porque no fim, quando tudo isto ruir — os likes, as lives, os workshops, os chakras alinhados à força — vai restar apenas isso: a verdade que sou pó. Que sou nada. Mas que, por um milagre incompreensível, Deus ainda me chama filha.
E talvez seja isso o mais escandaloso de tudo.
Não o facto de eu não ser pastora.
Mas o facto de, sendo nada — uma filha desgraçada de Eva — Ele ainda querer fazer de mim, um dia, à custa do Seu sangue, uma herdeira do Céu.
Por isso sigo. Sem palco. Sem túnica. Sem altar.
Com a mala arrumada.
Com o coração em obras.
Com a esperança coxa.
Mas sigo.
Porque mesmo no meio do lixo das minhas escolhas,
sei que há um Deus que não se impressiona com filtros,
mas se comove com um “perdoa-me” sincero.
E só por isso… ainda respiro.
E só por isso… ainda escrevo.
Hoje, eu sou amada.
Não por uma plateia invisível. Não por seguidores anónimos que desaparecem ao primeiro tropeço.
Sou amada pela minha família, assim como sou: torta, desbocada, sensível, teimosa, impaciente, arrependida, generosa.
Amada sem maquilhagem emocional, sem avatar espiritual. Amada com rugas de dor e cicatrizes de vida.
E isso basta. Isso basta mais do que qualquer multidão rendida à imagem que nunca fui.
Sou amada por Deus.
E se isto não for milagre, não sei o que é.
Deus, esse que me viu escavar covas no fundo do coração e ainda assim me deu sementes.
Esse que não me tirou do deserto com um estalo, mas caminhou comigo enquanto tropeçava na areia.
Esse que não exige espetáculo, nem pirotecnia, nem currículos espirituais — só entrega. Só verdade.
Esse que me conhece até aos ossos e ainda assim não desiste de mim. Que vê o pó e chama diamante.
Que vê o lixo e semeia flores.
E por isso amo. Intensamente. Sem moderação. Sem cálculos.
Amo com vísceras, com entranhas, com tudo. Amo sabendo que amar fere. Que amar desgasta. Que amar gasta.
Mas ainda assim, amo.
Porque quem foi perdoado muito, ama muito.
E quem viu o inferno, reconhece o paraíso até num olhar.
Amo no silêncio.
Amo nas pequenas coisas.
Amo onde ninguém olha.
Amo onde ninguém bate palmas.
Porque o amor verdadeiro não precisa de palco.
Precisa só de se dar.
Prefiro não ser o centro de nada.
Prefiro ser canto, margem, bastidor.
Prefiro ser discreta do que decorativa.
Prefiro ser verdadeira do que viral.
Prefiro mudar em mim o que me irrita nos outros — e não fundar um movimento a pedir que o mundo mude por mim.
Prefiro ver qualidades. Prefiro levantar o outro com palavras que não ferem, mesmo quando poderia ganhar pontos ao rebaixá-lo.
Prefiro calar quando sei que estou certa, só para não esmagar quem já está no chão.
E nisto tudo… sem querer, sem procurar… torno-me santa à minha maneira.
Não canonizada, mas redimida.
Não proclamada, mas acolhida.
Não seguidora de modas espirituais, mas caminhante de um Deus que me escapa e me ama ao mesmo tempo.
Não iluminada por holofotes, mas por dentro. Por Ele.
E então, por fim, chega o silêncio estrondoso.
Aquele que só ouve quem já passou pelas tempestades.
Aquele que ilumina por dentro, como se cada célula do meu corpo dançasse com o Espírito.
Aquele que não precisa de música de fundo nem fundo de ecrã.
Um silêncio cheio de céu.
Porque no fim de tudo, não sou nada.
Mas em Deus, sou tudo.
Sou obra inacabada, mas já assinada pela graça.
Sou luz que brilha mesmo estilhaçada.
Sou fogo que arde em mansidão.
Sou mulher que carrega a noite mas caminha para o dia.
Sou queda que virou voo.
Sou dor que virou canção.
Sou vaso rachado por onde escorre a luz.
E assim termina este manifesto, esta confissão, esta oração de mulher ferida e de pé:
Eu, filha de Eva.
Eu, aprendiz de Maria.
Eu, com a mala arrumada e o coração em chamas.
Eu, que não sou pastora, nem santa, nem estrela.
Eu, que sou só de Deus —
E isso é mais do que tudo.