Quando a Alma Reconhece
A vida tem uma maneira peculiar de nos ensinar. Às vezes, os ensinamentos vêm envoltos em doçura, noutras vezes são duros, implacáveis, e deixam marcas que nunca se apagam por completo. Somos enganados, mas o pior não é a mentira alheia – é a nossa própria entrega voluntária à ilusão. Porque, no fundo, preferimos acreditar naquilo que queremos que seja verdade. Fechamos os olhos a sinais evidentes, ignoramos intuições, enganamo-nos a nós mesmos com a esperança de que o coração, por si só, seja suficiente para moldar a realidade. Mas a verdade sempre se impõe, mais cedo ou mais tarde. E quando o véu cai, resta-nos apenas a dor do desengano e a árdua tarefa de reconstrução.
Foi assim que aprendi a erguer muros. A selecionar com precisão quem permito entrar no meu mundo. Tornei-me mais observadora, mais cautelosa, mais silenciosa. Mas por mais alta que seja a muralha, por mais fortificada que esteja a alma, há encontros que estão destinados a acontecer. São como chaves perdidas que encaixam perfeitamente nas fechaduras enferrujadas do nosso coração. Não vêm pela força, não vêm pelo acaso – vêm porque sempre estiveram a caminho.
Hoje, eu e o meu filho vivemos um desses encontros. Ou melhor, revivemos. Porque esta amizade já tem raízes, já provou ser verdadeira, já mostrou que o amor pode manifestar-se de formas inesperadas e profundamente transformadoras. Fomos até à casa de um casal amigo. Mas chamá-los apenas de “amigos” seria reduzir o que realmente são. São almas raras, dessas que nos fazem acreditar, de novo, na beleza das relações humanas.
Ela é uma artista no sentido mais puro da palavra. Suas mãos têm o dom de criar, de transformar materiais simples em peças que carregam alma, história e significado. Cada pincelada, cada detalhe, cada composição carrega uma parte do seu ser. E isso é algo que admiro profundamente: a capacidade de expressar emoções sem precisar de palavras.
Ele, por sua vez, tem a música dentro de si. Não apenas como uma habilidade técnica, mas como uma linguagem, como uma forma de comunicação que transcende o que é visível. O som que sai das suas mãos, das cordas que toca, do conhecimento que transmite, não é apenas som – é sentimento, é vida. É uma espécie de oração sem palavras, um diálogo entre alma e instrumento.
Mas o que mais me encanta neles não é apenas o talento, a inteligência ou a cultura vasta que possuem. O que verdadeiramente me toca é a humildade. Têm uma vida confortável, não precisam de mais nada materialmente, mas não há neles qualquer traço de ostentação ou superioridade. São simples, são autênticos, são humanos no melhor sentido da palavra.
Quando chegámos, fomos recebidos com o carinho de quem acolhe sem reservas. O meu filho foi experimentar tocar viola clássica, e eu soube, desde o primeiro instante, que estava no lugar certo. O anfitrião guiou-o com paciência, com a firmeza de quem sabe ensinar, mas sem jamais impor ou pressionar. Havia respeito. Havia entusiasmo. Havia aquela magia inexplicável que acontece quando alguém abre as portas do conhecimento a outro ser humano.
E ali, naquele momento, senti-me profundamente grata. Não apenas por esta oportunidade para o meu filho, mas pelo simples facto de existirem pessoas assim. Pessoas que, sem grandes gestos, sem promessas vazias, mostram que o bem existe, que a verdade se reconhece no olhar, que a amizade não precisa de grandiosidade para ser imensa.
A nossa conversa prolongou-se. Falámos sobre arte, sobre vida, sobre fé. E é aqui que entro num ponto fundamental. Porque há muitos que veem a fé como uma prisão, como um conjunto de regras rígidas ditadas por um Deus severo e distante. Mas a minha fé – e a deles – é diferente. O Deus em que acredito não é um tirano que impõe castigos arbitrários. O Deus que me guia é amor, é liberdade, é escolha.
Não obrigo o meu filho a ir à catequese nem à missa. Porque fé não é rotina vazia, não é obrigação imposta. Fé é encontro, é vontade genuína, é um chamamento que vem de dentro. E quando o coração dele quiser, quando sentir o desejo verdadeiro de buscar esse espaço, eu estarei ao seu lado. Assim como este casal faz. Eles são cristãos não pelo que dizem, mas pelo que vivem.
A noite caiu quando saímos daquela casa, mas dentro de mim havia luz. Um brilho discreto, quente, que me envolvia e me lembrava de algo essencial: há pessoas que são verdadeiras dádivas. São provas de que, apesar das desilusões, das cicatrizes e dos muros que construímos, ainda vale a pena acreditar.
E quando encontramos essas pessoas, quando nos permitimos sentir, quando baixamos, nem que seja por um instante, as nossas defesas, algo extraordinário acontece. Não é apenas amizade. Não é apenas afinidade. É algo maior. É a certeza de que, mesmo num mundo tantas vezes frio e desencantado, o amor ainda é real.