Luz ... Sombra
Sou filha das marés, feita de sombra e lume, habitante desse intervalo onde a luz desenha contornos na escuridão. Escolhi ser claridade, mas carrego em mim a noite. Sei que a luz não anula a sombra — apenas a molda, apenas a dança com ela. Quem brilha demais projeta sombras fundas, e eu, que trago o coração aceso, conheço bem os fantasmas que me seguem.
Gosto de me perder dentro de mim. Há quem chame solidão ao que para mim é regresso. Volto às minhas águas, mergulho nos meus abismos, encontro-me nas conchas esquecidas no fundo do tempo. Leio, escrevo, pinto, penso. Escuto-me. O silêncio não me assusta; pelo contrário, conforta-me, abraça-me como um velho amigo. Porque quem aprende a ser casa para si mesma nunca teme o deserto.
Disseram-me um dia que eu emanava uma grande luz. Ri-me. Não porque duvide, mas porque sei que a luz é uma lâmina de dois gumes. Quem ilumina, expõe; quem brilha, atrai; e quem atrai, por vezes, chama para si o que é indizível. Mas eu não temo. Sou feita de mistérios, de raízes fundas, de um sentir que não se dobra ao tempo. Como o Caranguejo, sou abrigo e maré, sou fuga e regresso, sou quem guarda e quem deixa ir.
Levo no peito a lealdade dos que amam sem cálculo. Sou feita de promessas silenciosas, dessas que não precisam de palavras para existir. Se protejo, protejo com todas as forças. Se amo, amo até às últimas marés. Mas sei também que a vida ensina sem pressa. Não me vingo; não preciso. A justiça do tempo é mais sábia do que a impaciência dos homens. Sei esperar. Sei ver o rio levar o que não me pertence.
O meu coração é oceano sem mapa, mas não é para todos. Há quem pense que o vê, mas apenas toca a espuma. Há quem mergulhe, mas nunca chegue ao fundo. Porque há em mim marés secretas, tempestades guardadas, segredos que nem o vento conhece. Sou transparência e enigma, sou quem acolhe e quem observa de longe, sou porto e naufrágio, início e fim.
Sou um ser de sombras que escolheu ser luz. E nessa escolha, renasço a cada dia.
Só existo por inteira para a família—e família, para mim, são os de casa: marido e filhos. O resto é laço de sangue sem garantia de pertença. Família não é nome no papel, não é obrigação herdada, não é proximidade forçada pelo tempo ou pela conveniência. Família é raiz, é verdade crua, é quem partilha o peso dos dias e o silêncio das noites. É quem me conhece até nos gestos que não faço, nos olhares que não dou.
O mundo lá fora recebe fragmentos, reflexos, versões diluídas de mim. Não por falsidade, mas por proteção. Porque quem sente fundo, quem ama sem margens, aprende cedo que nem todos sabem segurar o peso de um coração inteiro. A minha entrega não é para todos. Há quem me veja e pense que me conhece, mas não passa do umbral. Eu sou como um mar antigo, daqueles que guardam segredos no fundo. Para mergulhar em mim, é preciso mais do que intenções bonitas. É preciso coragem, é preciso verdade. E muito poucos têm.
Os de casa sabem. Os que passaram no crivo conhecem. Sentem a minha lealdade, essa que é firme como rocha, essa que não vacila nem nas piores tempestades. Se és dos meus, és meu para sempre. E não importa a distância, não importa o silêncio dos dias. O que eu protejo, protejo com garras e marés.
Mas se não és, não insistas. Não te enganes com a ideia de que me conquistas com palavras soltas. O tempo ensinou-me a diferença entre presença e aparição, entre compromisso e conveniência. Se há algo que aprendi, é que nem toda a mão estendida é laço verdadeiro. E eu, que sou feita de instinto e pressentimento, sinto ao longe quem vem por bem e quem só quer tocar a luz sem suportar as sombras.
Podem chamar-me distante, fechada, seletiva. Que chamem. Pouco me importa. O meu crivo é rigoroso, e poucos passam. Mas quem passa, passa para sempre. Porque para mim, amor não é palavra, é raiz. E raiz não se espalha ao vento, não se dá a qualquer um. Os de casa são a minha âncora, o meu refúgio, o meu círculo sagrado. São aqueles por quem atravesso qualquer tempestade sem hesitar, por quem dou a vida sem precisar pensar duas vezes.
O resto? O resto é ruído. Vozes que vêm e vão, rostos que se perdem no tempo, intenções que nem sempre são o que parecem. O mundo não precisa saber quem sou por inteiro. Basta que saibam os de casa. O resto, que veja apenas o que eu permitir.