Onde Mora o Perdão: Carta ao Passado e ao Silêncio
"Ama e faz o que quiseres."
— Santo Agostinho
Carta ao Passado: Sobre Perdão, Memória e o Silêncio Sagrado do Adeus
Há momentos na vida em que somos confrontadas não pelo acto em si, mas pela incompreensão que ele suscita nos olhos alheios. Como se a linguagem com que decidimos escrever o nosso capítulo final fosse indecifrável para quem ainda lê com a pressa de quem quer chegar ao fim sem absorver o sentido das entrelinhas.
Fui interpelada, recentemente, por uma dessas perguntas que carregam mais peso do que aparentam: “Porquê falaste com quem te feriu?” — Como se o acto de falar, de justificar-me, fosse uma rendição, uma fraqueza, um convite ao inimigo para retornar ao meu território. Como se o perdão devesse ser silencioso, invisível, quase clandestino, e a distância eterna fosse prova de força.
Respondi com calma, com um sorriso leve que só se aprende depois de atravessar desertos interiores: Porque já tinha perdoado há muito tempo. Mas sei que, para quem escuta, esta resposta não basta. Porque poucos compreendem que o perdão verdadeiro não é espectáculo, não é bandeira que se ergue perante uma plateia. O perdão é uma obra silenciosa, meticulosa, construída pedra a pedra no recanto mais profundo do ser, longe de testemunhas, longe de palcos.
E talvez aqui caiba invocar Simone Weil, que tão bem escreveu que o verdadeiro amor pelo próximo é aquele que não busca resposta nem reconhecimento. O perdão, para mim, carrega essa mesma pureza: não busca retorno, não necessita aplauso. É oferenda discreta, feita de mãos vazias, de coração inteiro.
Talvez seja estranho para muitos, mas para mim, o perdão é um exercício de memória. Porque ao contrário da crença popular, eu não esqueço. Não sou dada a esses apagamentos convenientes. A minha memória é precisa, obsessiva, teimosa. Recordo os gestos, as palavras omitidas, os silêncios que cortam como vidro fino. Recordo a ferida aberta não só em mim, mas naquela parte de mim que respira fora de mim: o meu filho.
E foi precisamente porque não esqueço que aprendi a perdoar. O esquecimento é fácil, é fuga. Perdoar lembrando exige coragem. Exige uma maturidade que só quem caminhou lado a lado com a mágoa compreende. Não foi imediato, não foi indolor. A mágoa demorou a dissolver-se, e ainda hoje, talvez, reste a cicatriz. Mas a cicatriz não dói; ela apenas lembra que ali houve um corte, e que este já foi sarado.
Nietzsche dizia que aquilo que não nos destrói torna-nos mais fortes, mas permito-me ir além: aquilo que nos fere, se for compreendido, transfigura-nos. Torna-nos mais humanos, mais lúcidos, mais livres. Fere-nos para nos revelar. As feridas são professores disfarçados.
Quando decidi falar, fazê-lo não foi um acto para o outro. Foi por mim, para mim. Porque há algo profundamente libertador em encerrar capítulos de forma consciente, com palavra clara, olhar firme, sem portas semiabertas nem pontas por cortar. Não queria deixar a ilusão de que havia um inimigo do outro lado. Quis que cada um pudesse seguir o seu caminho leve, sem pesos falsos.
Despedi-me com a delicadeza de quem diz “até amanhã”, sabendo, porém, no recanto mais íntimo, que era um adeus. Não um adeus amargo, não um cortar abrupto. Um adeus tranquilo, respeitoso, definitivo. Porque há almas que apenas se cruzam para cumprir um propósito — ensinar-nos algo essencial — e depois, seguem noutra direcção. E é precisamente aí que a vida, sábia, coloca o ponto final onde tantos teimam em colocar vírgulas.
E curioso — ou talvez não por acaso — vivemos este tempo da Quaresma. Para os católicos, a Quaresma é um tempo de recolhimento, penitência e reconciliação. Um tempo de introspecção onde se revisita o que fomos, se olha para as próprias falhas e se prepara o espírito para a Páscoa, para o renascimento. Mas aquilo que tantas vezes é esquecido é que a verdadeira reconciliação não se dá nas praças públicas, nem se faz à pressa para cumprir calendário litúrgico. A reconciliação mais autêntica acontece no segredo do coração, no silêncio das noites em que Deus nos visita sem palavras.
Recordo aqui Santo Agostinho, no seu livro das Confissões, quando escreve que "o meu coração está inquieto até que repouse em Ti". Talvez toda esta jornada de perdão e desapego não seja mais do que isso: um caminho até que o coração encontre finalmente repouso, deixando de ser prisioneiro do passado.
A minha Quaresma foi longa, solitária, tecida em noites de vigília invisível. Reconciliei-me comigo mesma, com a ferida, com a memória, com o outro. E no dia em que soube que já não havia mágoa, percebi que podia falar. Não para reviver o passado, mas para garantir que ele ficaria, finalmente, no lugar onde pertence: atrás de mim.
Rilke escreveu que “o passado não é um fardo a carregar, mas um chão sobre o qual devemos caminhar”. E é exactamente isso: não carrego mais. Caminho. Com as cicatrizes limpas, com os bolsos vazios de rancor, com espaço para o novo.
Há quem não compreenda. Quem prefira o corte seco, a indiferença, como se ignorar fosse sinal de força. Mas aprendi que a verdadeira liberdade está em poder olhar o passado nos olhos e dizer: já não me defines. Não há dívida, não há ressentimento. Apenas respeito. E um desejo sincero de que a vida sorria, até àqueles que não souberam cuidar da nossa.
Simone de Beauvoir lembrava que não somos apenas aquilo que fizeram de nós, mas aquilo que escolhemos fazer com o que fizeram de nós. Eu escolhi transformar, não endurecer.
Há também uma outra verdade simples e subtil: há relações que, mesmo depois do perdão, não têm continuação possível. Não por falta de amor, carinho ou gostar, mas por excesso de lucidez. Demasiadas diferenças estruturais, demasiados desencontros essenciais. Não há ponto de encontro que não seja artificial. E não há mal nenhum nisso. Nem toda semente está destinada a florescer no mesmo jardim.
Hoje, olho para trás com serenidade. Se tivesse de reviver tudo, não mudaria nada, porque foi nesse percurso que me encontrei. Aprendi a reconhecer as cicatrizes como medalhas discretas. Aprendi que não se deve mendigar compreensão, nem adiar despedidas por medo de ferir. Há despedidas que não magoam; libertam. E quando são feitas com respeito, não deixam ferida aberta em ninguém.
Aos que perguntam porquê falei, porquê justifiquei, digo apenas: porque sou inteira. Porque prefiro a clareza ao mal-entendido, a palavra dita ao silêncio carregado. Porque a minha alma exige coerência, e porque não quero que ninguém carregue comigo fantasmas que já não existem.
Hoje, desejo apenas leveza. Para mim, para quem partiu, para quem ficou. Desejo que cada um tenha o seu espaço para crescer, sem pesos inúteis. Não carrego rancor, nem necessidade de reatar laços que não fazem sentido. Fica o respeito. Fica a lição. Fica, acima de tudo, a liberdade.
E se algum dia os ventos da vida nos voltarem a cruzar, que seja como estranhos gentis, sem dívida, sem mágoa, sem passado. Porque o passado já não mora aqui.
Epílogo:
Que quem leia isto encontre um espelho, ou talvez uma janela. Que perceba que há um lugar onde mora o perdão — e esse lugar é dentro, não fora. Que entenda que amar, como dizia Agostinho, é a única condição. O resto… o resto são as asas que ganhamos quando deixamos de carregar pesos que não nos pertencem mais.