Ossos Não São Troféus
Há aberrações que a natureza, num gesto de ironia cósmica, insiste em deixar soltas pelo mundo. Não por erro de fábrica, mas quase como prova viva de que o livre arbítrio pode ser usado para descer ao mais rasteiro dos níveis. Há criaturas que parecem ter sido talhadas não à imagem de Deus, mas moldadas nas sobras, nos restos da criação, carregando em si uma amálgama nauseante de ignorância atrevida, moralismo vazio e uma astúcia reles, digna de ratazana de esgoto.
Não lhe coube o gene da inteligência — essa ferramenta luminosa que permite ao ser humano erguer-se acima da mediocridade. Não. O que herdou foi outra linhagem: a da bisbilhotice crónica, da inconveniência descarada, do veneno disfarçado de virtude. Tem o hábito pérfido de mover-se nas sombras, nas esquinas, sempre a espreitar, sempre com a língua pronta para destilar malícia, mas sem nunca ter a decência ou a coragem de enfrentar à luz do dia.
Depois de já ter sido apanhada, com provas, no acto de envenenar ambientes, infernizar vidas e destilar comentários que fariam qualquer pessoa minimamente decente esconder-se por vergonha, eis que não satisfeita, não redimida, essa criatura das trevas teve o desplante colossal de querer meter-se no sagrado: o levantamento dos ossos da minha mãe.
Veja-se o grau da audácia. Como se a memória da minha mãe fosse mercadoria, passível de disputa por quem nunca soube o que é respeito, dignidade ou amor verdadeiro. Minha mãe, mulher de inteligência serena, honra férrea, jamais será bibelô para adornar o espetáculo grotesco de vaidades de uma alma perdida.
Porque, ao contrário da senhora em questão — que se arvora evangélica, mas pratica o farisaísmo mais básico — a fé da minha mãe não foi feita de barulho nem de exibição pública. Foi construída no silêncio, na caridade, no respeito ao próximo sem necessidade de palcos ou púlpitos improvisados. Era fé que não precisava gritar para se fazer ouvir. Fé que não precisava controlar, nem julgar, nem manipular a vida dos outros para sentir-se válida.
E eu, católica convicta, sei distinguir entre veneração e idolatria, não preciso transformar restos mortais em troféus para provar amor. O pó ao pó. Assim minha mãe quis. Não será encerrada em vitrines, em caixinhas de vaidades, nem usada como peça no teu teatro pútrido. A sua vontade foi expressa e será cumprida com firmeza — não pela força de dinheiro, pois se fosse por isso, facilmente haveria quem pagasse. É por princípio, e princípios, minha cara, é matéria que nunca soubeste manejar.
E o mais patético, o mais grotesco, é a tua encenação contínua. Sempre nas sombras. Sempre sussurrando, sempre rondando como um espectro faminto por migalhas de relevância. És incapaz de construir algo teu, chamaste-me parasita quando és tu que parasitas a vida dos outros. Não vives, não deixas viver. Alimentas-te do que não é teu. Como fungo, como praga.
Queres intrometer-te até na morte, porque nunca foste capaz de intrometer-te na vida de forma digna. Confundes fé com teatro, Deus com aplauso, Bíblia com arma. Mas lembra-te: quem muito aponta o dedo, revela mais sobre si do que sobre quem acusa. É nos teus próprios gestos que a tua pequenez se escancara.
Minha mãe voltará à terra, ao pó, ao ciclo natural onde tu não tens ingerência. E tu, criatura das sombras, continuarás a rastejar entre os escombros da tua própria alma vazia. Porque não sabes amar, não sabes respeitar, não sabes calar-te.
E para ti, que gostas de invocar Deus enquanto moves-te como serpente, deixo-te isto, que tão bem se aplica aos que vêm carregados de veneno mas cobertos de aparências:
Crux Sancti Patris Benedicti
(Cruz do Santo Pai Bento)
Crux Sacra Sit Mihi Lux
(A Cruz Sagrada seja minha luz)
Non Draco Sit Mihi Dux
(Não seja o dragão meu guia)
Vade Retro Satana
(Retira-te, Satanás)
Numquam Suade Mihi Vana
(Nunca me aconselhes coisas vãs)
Sunt Mala Quae Libas
(É mau o que me ofereces)
Ipse Venena Bibas
(Bebe tu mesmo os teus venenos)
Bebe, pois, os teus próprios venenos. Bebe cada palavra tóxica, cada gesto insidioso, cada sombra onde preferiste rastejar. E lembra-te: o mal que moves volta sempre ao remetente.