Verdade Intolerável.

 Há pessoas que lidam comigo como quem observa um quadro sem conseguir distinguir se é um espelho ou uma pintura. Aproximam-se, tentam decifrar, mas tropeçam sempre na mesma armadilha: acham que aquilo que veem é reflexo distorcido de si próprios, quando na verdade nunca chegaram a perceber que há ali uma obra original, uma construção paciente, feita de matéria própria e não de imitação barata.

Lidam comigo sem me conhecer. Lidam comigo como quem lida com uma equação complexa, mas sem vontade de resolver. E aqui reside o cerne: não é a complexidade que os intimida, é o trabalho intelectual e emocional que seria necessário para compreender. Preferem partir do princípio de que não há solução — que tudo o que é denso deve ser disfarce, que tudo o que é consistente deve esconder falhas. Porque admitir que alguém possa existir com estrutura sólida e luz própria seria reconhecer o que não possuem.

O desconforto nasce aí. Não de mim, mas da comparação silenciosa que fazem e da inferioridade que sentem, mas jamais confessariam. Para que lhes sirvo eu? Sirvo-lhes como medida de tudo o que não têm coragem de construir em si mesmos. E quando algo foge ao entendimento raso, quando lhes confronto a mediania com a mera presença, eis que surge a reacção previsível: a tentativa de desconstrução, de desvalorização, de ataque velado.

É quase um processo pavloviano: eu existo, eles sentem-se ameaçados. Não pelos actos, não pelas palavras, mas pela simples possibilidade de autenticidade. Não suportam a ideia de que alguém possa, efectivamente, ser aquilo que diz ser. Preferem crer que tudo é encenação, porque viveram tanto tempo no palco que já não distinguem quem vive fora dele.

Se escrevo — e escrevo. Não pode ser meu. Deve ser pose. Algum eco de leituras alheias, pensam, incapazes de conceber que haja pensamento original em quem não precisa de citar para existir. Se pinto, se crio, é exibicionismo, como se a criação não fosse antes necessidade interior do que vitrine pública. Se toco, se sinto, é fingimento, porque há quem tenha secado tanto por dentro que não acredita mais que a sensibilidade exista.

Se tenho alguma inteligência, pior ainda: ameaça directa. Para estas almas frágeis, inteligência só é tolerável quando submissa, quando ao serviço da validação social ou da conveniência. Uma mulher que pensa e não pede desculpa por pensar, eis o verdadeiro escândalo.

Tenho um casamento estável, sólido, verdadeiro. Dói-lhes. Não porque o desejem necessariamente, mas porque desmente a narrativa cínica onde vivem: aquela que afirma que tudo é efémero, que ninguém ama de verdade, que tudo tem um preço. Sou mãe — presente, firme, humana — e também isso lhes pesa. Como se educar com amor e exigência fosse algo que já não cabe no mundo. E quando afirmo, sem hesitação, que abracei a fé católica, não por tradição, não por conveniência, mas porque me entreguei, porque encontrei, porque decidi, aí então a perplexidade atinge o auge. Fé verdadeira? Impossível. Terá sido troca, influência, jogo social. Jamais poderão admitir que alguém encontre sentido onde eles preferem manter vazio.

Nietzsche escreveu que "as convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras". Curioso, porque aquilo que enfrentam em mim não é uma convicção cega, mas uma verdade vivida. É precisamente isso que não suportam: não há aqui dogma estéril, há coerência dolorosa. O meu compromisso com aquilo em que acredito não lhes dá espaço para relativismos confortáveis.

E é interessante notar como projectam em mim os próprios demónios. Nunca me apontam os defeitos que realmente tenho — e, garanto, não sou santa nem pretendo sê-lo. Preferem atribuir-me os vícios que cultivam secretamente, como quem limpa as mãos sujas no casaco alheio. Mentem sobre mim, não porque desconheçam a verdade, mas porque é mais fácil mentir do que reformular a própria existência.

Há algo profundamente infantil nesse comportamento. É como crianças que, ao não conseguirem construir um castelo, optam por derrubar o de quem conseguiu. Não suportam a ideia de que alguém tenha tido o trabalho, o esforço e, sobretudo, a coragem de erguer algo verdadeiro.

Ser honesto, ser íntegro, ser autêntico — exige renúncia. Exige atravessar desertos interiores sem garantias de oásis. Exige olhar o espelho sem adornos e aguentar o reflexo. Não é para todos. Não é cómodo. E por isso mesmo preferem fingir que quem vive com inteireza só pode ser farsante.

Eu olho-os com uma certa compaixão clínica, como quem observa um paciente que insiste na automutilação emocional enquanto se queixa da dor. Gostariam de ser inteligentes? Pois treinem. Não é apanágio divino, é exercício, disciplina, silêncio interior. Gostariam de ser íntegros? Pois desçam dos pedestais artificiais e aprendam que integridade não é performance, é prática diária, invisível, sem aplauso.

Gostariam de ser autênticos? Ousassem, por uma vez, arrancar as máscaras. Não para os outros, mas para si próprios. Descobririam talvez que a autenticidade não tem truques nem prémios imediatos. Tem paz. E essa paz, percebo agora, é o que mais lhes custa ver em mim. Porque nada lhes é mais insuportável do que alguém que não precisa da permissão do mundo para viver tranquilo.

Sartre dizia que "o inferno são os outros", mas atrevo-me a discordar em parte. O inferno, para estas pessoas, não sou eu. O inferno é o espelho interior que evitam encarar, e que a minha simples existência torna inevitável.

Podem continuar a tentar apagar-me. Tentem. Inventem narrativas, levantem suspeitas, questionem intenções. Façam-no com todo o afinco. A luz que emano não depende do reconhecimento que negam. Não fui feita para habitar sombras alheias.

O que mais me diverte? É que cada tentativa de diminuir-me apenas os diminui a eles. Não perceberam ainda que quanto mais me tentam desconstruir, mais revelam a própria fragilidade.

Eu continuo. Sem pedir desculpa por existir inteira. Sem precisar de moldar-me à pequenez alheia.

Eles? Continuam prisioneiros das suas máscaras. E talvez continuem para sempre, porque não há cárcere mais sólido do que aquele que se constrói com as próprias mãos.

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