A Plenitude do Sentir: Entre a Dor e o Prazer
Se a dor fosse crime, eu, que me movo entre os contornos escurecidos do quotidiano, estaria algemada a um destino que não conheço, vagando pelas ruas como um espectro condenado. As minhas vestes seriam de tecido grosseiro, padronizadas pelo infortúnio, talvez num xadrez que me roubasse a identidade, enquanto os meus pés, incansáveis, se perderiam em caminhos feitos de pedra fria e ignorância. Não carregaria corpo, nem carne, nem matéria alguma para obedecer-me; seria apenas alma, essa substância intangível e imortal que desafia tanto o tempo quanto a compreensão. Talvez o que agora ressoa nas profundezas do meu peito, ecoando como um lamento abafado, fosse nesse cenário uma prova do meu delito. Porque que outro crime mais atroz poderia haver do que sentir? Sentir, em toda a sua pungência, é por vezes um acto subversivo, quase criminoso, porque nos liberta das limitações do real e mergulha-nos em um abismo onde razão e caos coexistem. Na sociedade das almas, quem é mais perigoso do que aquela que sente sem tréguas, que transforma dores em palavras, que nomeia o indizível e o transforma em perpétuo?
Vejo-as, essas almas delinquentes, tal como eu. Elas caminham desordenadamente por ruas sem nome, olham umas para as outras mas não se reconhecem, porque as marcas do crime – o sentir demasiado, o querer além do possível – tornaram-nas demasiado similares. Somos irmãs de condenação, arrastando o peso das cicatrizes invisíveis que, ao invés de adornar os corpos, gravaram-se nas fibras profundas da existência.
E o que dizer dos juízes dessa sociedade hipotética, das vozes que determinam o que é tolerável ou demasiado, o que é norma e o que constitui o delito de sofrer? Seriam eles, de alguma forma, isentos da culpa que nos acusa? Porque todo aquele que se crê insensível carrega no peito não a ausência do sentir, mas o medo de que esse sentir se torne palpável, derrame-se como um rio impossível de conter. As suas sentenças não são fruto da justiça; são antes o reflexo das suas próprias inabilidades, das suas tentações reprimidas, do desejo furtivo de serem também eles culpados.
Se a dor fosse crime, seria necessário um código de leis próprias. Determinar-se-ia a intensidade que transforma o desconforto em angústia, a linha que separa a melancolia tolerável do desespero inaceitável. Haveria gradações, como nas infracções banais: a dor leve seria um mero aviso, uma multa existencial; a dor profunda talvez implicasse encarceramento, isolamento das outras almas, uma quarentena emocional. Mas como medir o peso de um sofrimento que é tão particular, tão íntimo, tão dependente das nuances inenarráveis que constituem a essência de cada ser?
No entanto, nesta cadeia imaginária onde a dor seria punida, ouso questionar: e se a verdadeira pena não estivesse no cárcere, mas na ausência de dor? Porque aquilo que nos fere também nos molda, e não há criação – seja ela arte, pensamento ou um simples movimento de renovação interior – que não nasça do sentir, ainda que esse sentir traga consigo o traço do sofrimento. Roubar-me a dor seria, de alguma forma, roubar-me a mim própria. Transformar-me-ia numa criatura inodora, insípida, uma sombra indistinta num mundo já saturado de silêncios e neutralidades.
E por isso, se a dor fosse crime, erguer-me-ia como rebelde. Recusar-me-ia a abdicar dela, a renegá-la, a escondê-la por trás de máscaras socialmente aceites. Porque, ao fim de tudo, somos todas prisioneiras da mesma condição: não há fuga, nem absolvição, nem remissão total para quem habita um mundo que respira e sente. E, se a única alternativa for vestir o xadrez e vagar como alma sem corpo, que assim seja. Porque não há castigo pior do que a anestesia. E, mesmo no suposto crime de sentir, há sempre espaço para beleza. A beleza do que dói mas resiste, do que fere mas transcende, do que rasga mas cria. Que as algemas da dor sejam, então, o preço de ser. Aceito-as, não com resignação, mas com a coragem serena de quem sabe que sentir é a única liberdade que importa.
Mas e se, por um instante, eu imaginar o oposto? Se, no lugar da dor, fosse o prazer o crime? O êxtase que nos arrebata, a felicidade pura e resplandecente que, tal como a dor, desafia as fronteiras da lógica e da contenção? Como seriam os que se atrevessem a sentir demasiada alegria, a romper a sobriedade do mundo com risos desmedidos, a transformar o ordinário num espelho radiante do extraordinário?
Imagino-me então, não numa prisão de sombras, mas numa cela feita de luz cegante, aprisionada por ousar sorrir para além do aceitável, rir alto em espaços onde o silêncio é lei. Vestiria trajes exuberantes, tecidos de ouro e de fogo, como se o mundo quisesse limitar a minha exuberância marcando-me com o peso do esplendor que tantos temem. E mesmo assim, as outras almas – as cúmplices do meu "crime" – mover-se-iam de forma desajeitada, transportando nas faces um brilho suspeito, um fulgor difícil de esconder, como se lhes tivesse escapado, por acidente, a maravilha do viver.
Porque, tal como a dor, o prazer não é compreendido. Onde a dor se confunde com fraqueza, o prazer se cruza com a insubordinação. Afinal, quem é aquele que tem direito a tanto? Quem se atreve a ser feliz sem permissão, a experimentar a plenitude como se o mundo não estivesse sempre à beira da ruína? Essas perguntas, ao mesmo tempo simples e corrosivas, transformariam a alegria numa espécie de contrabando, um fruto proibido reservado a quem ousasse desafiar as expectativas impostas.
Se o prazer fosse crime, haveria também regras para ele: que limites não seriam transgredidos, que emoções não poderiam ultrapassar os mínimos socialmente tolerados? Talvez, como na dor, houvesse gradações – um sorriso discreto seria admissível, mas uma gargalhada incontida já constituiria uma afronta. Um pequeno triunfo pessoal poderia ser desculpado, mas a felicidade duradoura, esta, não. Tal como a dor tem o seu peso, o prazer também tem o seu fardo, e este é medido pelo desconforto que provoca em quem o observa. Porque, no fundo, o prazer alheio escancara a possibilidade do próprio vazio; ilumina as vidas apagadas que preferem não ver a existência em todas as suas cores.
Eu, porém, não teria medo de tal condenação. Caminharia por entre as multidões com uma luz impossível de apagar, sabendo que o prazer que sinto é tanto uma vitória quanto um desafio. Porque ser feliz, realmente feliz, é um acto de coragem. É recusar a indiferença, a apatia, as zonas cinzentas onde o ser humano, tantas vezes, se refugia para se poupar à complexidade de sentir. E, tal como na dor, seria capaz de reclamar a beleza do prazer com a mesma intensidade. A beleza das coisas simples – a luz matinal que atravessa uma janela entreaberta, o riso de uma criança que nem sabe por que ri, o gosto de algo que parecia esquecido. Essa beleza não tem medidas ou preços; ela é infinita, como as estrelas, como os segredos que se escondem por entre as folhas de uma floresta. E, se amar isso, celebrá-lo sem remorsos, me tornasse criminosa, que assim fosse.
Na coexistência destes opostos – dor e prazer – reside a trama inteira de ser. E talvez o grande mistério da existência seja precisamente esse: a incapacidade de os separar. Porque não é o prazer que cura a dor, nem é a dor que anula o prazer. Eles entrelaçam-se, numa dança complexa, como se o Universo, em toda a sua sabedoria impassível, nos quisesse ensinar que viver, em toda a sua extensão, é aceitar ser culpada de ambos os crimes. A culpa de sentir, em cada extremo, é também a redenção mais absoluta. É o dom de existir.
Mas há um ponto onde os opostos se encontram, um fio invisível que entrelaça dor e prazer, sombra e luz. E nesse ponto, eu encontro-me. Sou inteira, feita de todas as contradições, e abraço cada sentimento, cada emoção que surge em mim, como quem aceita o inevitável pulsar da vida.
Eu não sou metade, não sou fragmento. Não me limito ao conforto do que é estável ou ao refúgio das emoções fáceis; aceito tanto a tormenta quanto a bonança, porque sei que não existe céu sem horizonte nem mar sem profundidade. Não fujo da tristeza quando ela se abate sobre mim como chuva densa; em vez disso, deixo-me molhar, sentindo o peso das gotas, até que cada lágrima que chorei me torne mais leve. E quando a alegria explode no meu peito como um raio de sol inesperado, permito-me sorrir com todo o rosto, sem medo de que o riso me torne demasiado visível.
Eu sou o grito e o silêncio, a ferida e a cura, o declive perigoso da mágoa e a ascensão triunfante do contentamento. Não me fragmento para caber em rótulos, em expectativas ou em zonas de conforto. Permito-me sentir, profundamente e sem vergonha, porque sei que há uma nobreza em não censurar o que a alma pede. Há dias em que a saudade me carrega para os recantos da memória e deixa-me lá, entre ecos e imagens desbotadas. Em outros, é a esperança que me embala, e eu avanço com passos leves, acreditando que o futuro guarda em si algo que ainda não consigo ver.
E essa completude – essa aceitação radical da minha humanidade – torna-me mais viva. Abraço o amor com o mesmo fervor com que abraço a dor da perda, porque ambas me recordam que sou capaz de sentir profundamente, de criar laços, de existir para além de mim mesma. Abraço o medo, pois ele alerta-me para os limites; mas também abraço a coragem, que me empurra para os ultrapassar. Até a solidão, quando se instala como uma sombra, tem o seu lugar em mim, porque sei que é ali, no silêncio dos momentos solitários, que eu ouço as verdades mais íntimas do meu ser. Ser inteira é um acto de desafio. É não ceder à ideia de que devemos escolher entre sentir ou esconder. É recusar a anestesia emocional que nos rouba tanto o sofrimento quanto o êxtase. Sou inteira porque amo até o que é difícil em mim: as feridas que ainda ardem, as fragilidades que tantas vezes tento camuflar, as incertezas que me deixam em suspenso. Aceito tudo isso, porque não há força maior do que saber que eu sou capaz de carregar-me a mim mesma, em todos os meus estados.
E na totalidade de quem sou, descubro algo que as palavras falham em abarcar: um equilíbrio que não é ausência de conflito, mas uma harmonia construída a partir dos opostos. Descubro que ser inteira não significa estar sempre em paz, mas sim viver com coragem a tempestade e a calmaria. Descubro que o sentir – intenso, pleno, avassalador – é a expressão mais pura da existência. E, por isso, nunca recusarei qualquer parte de mim. Sou, afinal, tudo. E isso é a liberdade mais autêntica que conheço.