O Que Há na Tua Caneca?

 Enquanto caminho com a minha caneca de café nas mãos, sinto o calor dela a aquecer-me os dedos, o cheiro intenso a envolver-me como um abraço reconfortante. Mas eis que a vida — em toda a sua imprevisibilidade — me empurra sem aviso. O líquido fervente derrama-se, salpica-me a pele, manchas escuras formam-se na minha roupa. Instintivamente, a mente agarra-se à explicação óbvia: "Foi o empurrão. Foi a colisão."

Mas não.

O café derramou porque era café o que estava na minha caneca.

Este momento — aparentemente banal, uma casualidade qualquer — revela-se, na verdade, uma epifania profunda. Aquele empurrão metafórico, aquele abalo que todos inevitavelmente enfrentamos em diferentes momentos, é um teste implacável à substância que trazemos dentro de nós. Porque quando a vida nos sacode — e ela sacode, com a brutalidade de uma tempestade ou a subtileza de um sussurro —, não é a aparência do que somos que transborda, mas a essência.

E é impossível enganar a verdade.

Podemos caminhar ao longo dos dias numa pose construída, exibindo ao mundo a imagem meticulosa do que gostaríamos de ser, mascarando fraquezas, escondendo tempestades interiores. Podemos preencher o exterior da nossa "caneca" com decoração vistosa: palavras belas, sorrisos estrategicamente colocados, aparentes gestos de virtude. Mas nada disso importa quando chega o impacto. Quando somos atingidos pelo infortúnio, pelo cansaço, pelas pequenas frustrações ou pelos grandes desgostos, o que verdadeiramente carregamos no íntimo é o que se revela — e muitas vezes para nosso próprio desconforto.

Então, pergunto-me: o que transbordará de mim?

Se a vida hoje me empurrasse, será que as palavras que sairiam dos meus lábios seriam carregadas de amargura ou de paciência? Se eu fosse hoje desafiada pelo inesperado, seria o medo o meu primeiro reflexo, ou a coragem silenciosa de quem já enfrentou batalhas interiores? Será o meu coração um recipiente de gratidão, mesmo nos dias mais cinzentos, ou alimenta rancores silenciosos, pequenos fantasmas que crescem enquanto ninguém olha?

Estas são perguntas que devíamos fazer todos os dias, não numa reflexão oca, mas com a coragem de quem reconhece a sua humanidade falível. Há em nós uma permanente construção; a caneca nunca está estática. A sua substância altera-se constantemente — pelo que lemos, pelo que ouvimos, pelo que pensamos, pelas escolhas que fazemos no mais pequeno dos momentos. E cabe-me a mim, só a mim, decidir se a encho com o mel da bondade ou com o veneno da apatia.

Há um cinismo intrínseco em reconhecer que o mundo não espera o nosso melhor. As provações surgirão de forma abrupta, os empurrões hão de vir de onde menos se espera — talvez do rosto de quem mais confiamos, talvez de uma circunstância indiferente. E nesse momento, a vida não quer saber das máscaras que construímos; ela é severa, cruel na sua honestidade. Revela o que está escondido.

Assim, esforço-me, todos os dias, para preencher a minha essência com aquilo que espero transbordar: paciência para comigo mesma e para os outros, a leveza de um humor doce nas adversidades, a generosidade de partilhar a beleza de cada pequeno momento. Não sou perfeita — e nunca serei —, mas a perfeição não é o objetivo. O objetivo é que, quando a tempestade chegar, eu não me afogue no que carrego, mas encontre ali uma razão para continuar a caminhar.

Pergunte-se, com honestidade: o que há dentro da sua caneca? A resposta talvez lhe dê mais do que pensa.

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