Entre Dualidades.
Levanto-me devagar, com o peso de quem carrega não apenas um corpo, mas uma alma que, por vezes, parece fatigada de existir. Os dias começam quase todos iguais, uma batalha silenciosa contra o que me arrasta para baixo e o que ainda me empurra para cima. Não falo, penso. Escrevo. E o que escrevo não é para o mundo, porque o mundo, muitas vezes, não compreende. Escrevo para mim, como quem tenta desemaranhar os próprios pensamentos.
Houve um tempo em que as dores eram tantas que preferi não senti-las, anestesiei-me na recusa de as enfrentar. Mas a dor, essa estranha presença, sabe como se infiltrar nas frestas. Até que percebi: só vencemos aquilo que temos coragem de nomear. E, assim, enfrentei. Descobri que viver exige mais do que existir, exige uma vontade feroz de encontrar sentido nos dias — mesmo que breves, mesmo que feridos.
A minha saúde? Nem me pertence mais. É uma coisa precária, frágil, caprichosa, que decidi proteger como quem guarda a última chama numa ventania. Faço o que posso, embora, por vezes, seja pouco. Há dias em que o corpo dói — mas é a alma que grita mais. Contudo, existem também aqueles momentos raros, quase milagrosos, em que o ânimo me toma de surpresa e me devolve a esperança.
Perder... já perdi tanto, tantas vezes. Não há contagem suficiente para medir as ausências. Dizem que nos habituamos à perda, mas nunca é bem assim. Aprendi, é certo, que a vida está sempre a escapar-nos das mãos. Também aprendi a perdoar. Não por altruísmo absoluto, mas porque a mágoa é uma carga pesada demais para se levar pela vida fora. Carregá-la seria um ato de autossabotagem.
Cresci numa casa onde até o teto e o quarto foram-me roubados, onde aprendi, à força, que nem o que é nosso é garantido. Transformei-me com isso. Hoje compreendo que todas as cicatrizes que carrego — visíveis e invisíveis — foram as ferramentas que me moldaram. Não sou mártir, nem heroína. Sou o que restou depois da tempestade. E, curiosamente, isso basta-me.
Hoje, dirijo-me às memórias com uma mistura de gratidão e distância. As minhas mães — uma de carne e sangue, a outra de céu e espírito — vivem agora juntas lá no alto. A elas, rezo. E o terço que desliza pelos meus dedos é a ponte entre o que fui e o que tento ser. Rezo para que os meus filhos tenham a força que eu não sabia que tinha quando os tempos foram cruéis. Luto, com o pouco que me resta, para que as dores do meu passado não se repitam no futuro deles.
Viver com dignidade é um esforço que nunca acaba. O corpo, sei, ao morrer transforma-se em silêncio, em pó, em algo que a terra aceita de volta. Mas a alma... essa só perde dignidade quando se entrega antes do fim. Eu não a entregarei.
Continuo aqui, de pé, entre a história que me fez e o presente que escolho viver. Cumprimento todos — os que me amaram e os que me feriram. Eles também fazem parte de mim. No fim, sou esta fusão de contrastes que me define: sou feliz, sou amada. Sinto tristeza e dor, raiva fugaz que logo cede lugar à compaixão. Tenho empatia, altruísmo, e generosidade, mas também a proteção da distância e a frieza necessária. Sou o equilíbrio das dualidades, uma dança permanente entre a força e a fragilidade, o caos e a harmonia.