"A Porta de Trás" — Como Destruir a Inocência de 25 Crianças (e Fazer as Mães Precisarem de Terapia)

Cheguei ao espaço utilizado para o projeto na hora marcada, às três da tarde em ponto. Era uma sala ampla, com cadeiras dispostas em semicírculo, paredes decoradas com desenhos infantis e aquele típico cheiro a bolachas de pacote e sumo de laranja entornado. À minha frente, 25 crianças sentadas com as pernas cruzadas, de olhos arregalados, prontas para ouvir uma bela história sobre generosidade e altruísmo. Atrás delas, as mães — 25 mulheres com expressões divididas entre o orgulho maternal e o desejo secreto de estarem em casa, a ver uma novela em silêncio.

A minha amiga Cátia — organizadora do evento e responsável por me meter nesta alhada — aproximou-se com o ar sereno de quem acredita genuinamente que tudo vai correr bem. Trazia nas mãos o livro escolhido para a leitura.

— Aqui está — disse, entregando-me o volume. — Chama-se "A Porta de Trás". Acho que tem uma mensagem linda sobre partilha e persistência.

Peguei no livro, dei uma vista de olhos à capa — simples, discreta, até elegante — e pensei: Ora, aqui está uma bela metáfora para abrir o coração ao próximo. Mal sabia eu que o único coração a abrir-se naquele dia seria o meu… de tanto rir.

Sentei-me, ajeitei os óculos, limpei a garganta e comecei a leitura.

— “Naquela tarde soalheira, o pequeno João aproximou-se da porta de trás. Era uma porta robusta, raramente usada, mas João estava decidido. Afinal, às vezes, é preciso insistir um pouco para conseguir o que se quer.”

Senti um ligeiro tremor nos lábios, mas continuei. Nada de mais, certo? Só uma criança persistente.

— “Com uma leve pressão, a maçaneta cedeu. A porta rangeu baixinho, como se hesitasse, mas João sabia que, com jeitinho, ela acabaria por se abrir.”

Foi aqui que o primeiro riso escapou. Tentei disfarçar com uma tosse, mas o calor começou a subir-me ao rosto. As crianças olharam para mim, curiosas. As mães entre-olharam-se com sobrancelhas erguidas. A Cátia inclinou-se ligeiramente para a frente, franzindo o sobrolho.

Respirei fundo e continuei:

— “João respirou fundo. Sabia que não podia desistir agora. Com um empurrão firme, sentiu a porta ceder. Apertada, mas acolhedora, a passagem estava finalmente livre.”

E pronto. Fim da linha. A gargalhada irrompeu de mim como um vulcão em erupção. As lágrimas começaram a escorrer-me pelo rosto, os ombros sacudiam-se incontrolavelmente, e o som do meu riso ecoava pela sala como um alarme de incêndio.

As crianças começaram a rir também — porque, como todos sabemos, o riso é contagioso, mesmo quando não percebem a piada. As mães, porém, não estavam a achar graça nenhuma. Algumas trocavam olhares desconfiados. Outras já tentavam calcular mentalmente o custo da terapia para desfazer os danos psicológicos.

— Está tudo bem? — perguntou a Cátia em voz baixa, aproximando-se de mim.

— Sim… sim… — menti, tentando recompor-me, mas o livro não dava tréguas.

— “A porta abriu-se lentamente, revelando um corredor estreito, mas convidativo. João hesitou por um momento, mas depois lembrou-se do que a mãe sempre dizia: ‘Às vezes, é preciso entrar por caminhos menos óbvios para alcançar o que desejamos.’”

O adolescente da última fila desatou a rir tão alto que quase caiu da cadeira. Uma das mães lançou-me um olhar fulminante, do tipo que se dá a alguém que acabou de ensinar ao filho uma lição de vida que não estava no programa. Outra tirou o telemóvel e começou a filmar — provavelmente para partilhar o vídeo num grupo de WhatsApp intitulado “Pérolas”.

— “João deu um passo em frente, sentindo o calor acolhedor do espaço. Apertado, sim, mas reconfortante. Afinal, o importante não é o tamanho da porta, mas a vontade de atravessá-la.”

Já não conseguia ler. As palavras dançavam à minha frente, desfocadas pelas lágrimas de riso. As crianças riam comigo, embora sem perceberem bem porquê. As mães tentavam manter a compostura, mas algumas já abanavam os ombros, a conter gargalhadas nervosas. A Cátia parecia à beira de um colapso nervoso.

— E agora, crianças… — tentei continuar, limpando as lágrimas com a manga da camisa branca com riscas cor de rosa. — Quem sabe o que significa ser generoso?

Um miúdo da primeira fila, com uns sete anos e uma expressão de genuína inocência, ergueu a mão:

— Significa partilhar coisas, mesmo quando não queremos muito. Tipo abrir a porta de trás para alguém entrar!

A sala explodiu em gargalhadas. Eu quase caí da cadeira. A Cátia levou as mãos à cabeça. Uma mãe levantou-se bruscamente, pegou no filho e saiu da sala a resmungar algo sobre “más influências”. Outra aproximou-se de mim, com um sorriso tenso e olhos semicerrados:

— Desculpe… este livro é MESMO para crianças?

— Eu… eu… — tentei responder, mas o riso não me deixava. — Juro que não sabia!

Enquanto tentava recuperar o fôlego, reparei no adolescente da última fila, agora deitado no chão, incapaz de se levantar de tanto rir. As outras crianças imitavam-no, transformando a sala num pandemónio.

A Cátia arrancou-me o livro das mãos e folheou-o rapidamente. O rubor subiu-lhe ao rosto como um termómetro prestes a rebentar.

— Oh, meu Deus… Isto é um livro de humor para adultos!

— Pois… parece que sim — consegui dizer entre gargalhadas. — Mas olha, pelo menos aprendemos uma lição sobre generosidade. Nem todos teriam a coragem de partilhar algo assim com um público tão… impressionável!

Quando finalmente consegui recompor-me, as mães estavam divididas em dois grupos: as que queriam processar a organização do evento e as que tentavam, sem sucesso, conter o riso. A Cátia, coitada, tentava pedir desculpa a todas ao mesmo tempo, enquanto eu limpava as lágrimas com um lenço de papel já encharcado.

No final, saí da sala com a dignidade em farrapos, mas com o abdómen mais definido do que nunca, graças à sessão intensiva de gargalhadas. Quanto à Cátia… bem, digamos que o seu projeto sobre generosidade ficou famoso, embora não exatamente pelos motivos que ela esperava.

Moral da história? Antes de ler um livro para crianças, certifiquem-se de que ele não foi escrito por um humorista com demasiado tempo livre e uma fixação suspeita por portas. A não ser, claro, que queiram tornar-se lendas urbanas da parentalidade moderna. Nesse caso, força. Eu após uma luta interna intensa, venci momentaneamente a aversão a ler perante muitas pessoas. Mais umas sessões destas e supero de vez....

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