O Ovo da Sôtora

 O Ovo do Frade e a Falsa Culpabilização do Demónio

No silêncio monástico da noite, onde apenas o crepitar distante de um candeeiro a petróleo rompia a escuridão, um frade, tomado por uma gula persistente, perpetuava um ritual secreto. Todas as noites, antes de trancar a despensa, subtraía furtivamente um ovo, que depois, com engenho e astúcia, cozia sobre a chama bruxuleante do candeeiro. Um pequeno delito, pensava ele, um deslize quase pueril que, na grande balança moral, não haveria de pesar demasiado.

Contudo, naquela noite em particular, o aroma inconfundível de ovo cozido denunciou-lhe a infração. O superior do mosteiro, ao cruzar o corredor, sentiu o odor e, intrigado, seguiu o rasto olfativo até ao quarto do frade. Ali encontrou-o, no exato momento em que este, de olhos semicerrados em deleite, saboreava o fruto da sua astúcia.

Apanhado em flagrante, o frade não hesitou em recorrer ao mais antigo e conveniente dos álibis: culpar o demónio. Contorcendo-se numa teatralidade bem ensaiada, ergueu as mãos ao céu, clamando que o tentador o havia seduzido, enganado, arrastado para o pecado. Era a narrativa perfeita: a culpa não residia na sua fraqueza, mas sim na pérfida influência do Príncipe das Trevas.

O superior, tomado por compaixão e desejoso de redimir a alma vacilante do frade, prometeu-lhe oração e libertação. Afinal, se o diabo o havia possuído, era dever dos irmãos arrancá-lo das suas garras. Com esse pensamento, afastou-se pelo corredor, refletindo sobre a constante batalha espiritual entre o bem e o mal.

Foi então que, na penumbra do mosteiro, ao fundo do corredor, ouviu-se um choro convulsivo. A princípio, julgou tratar-se de algum irmão em penitência, mas ao aproximar-se, deparou-se com uma visão inusitada: o demónio, sentado na sombra, soluçando como uma criança injustiçada.

Intrigado, o superior inquiriu:

— Porque choras, demónio?

E a resposta foi inesperada, ácida, devastadora na sua ironia:

— Choro porque sou caluniado. Passei séculos a seduzir almas, a instigar ao mal, a arquitetar quedas morais. Mas, desta vez, sou acusado injustamente! Nunca disse a esse frade para roubar um ovo. Um ovo!? Nem sequer sabia que era possível cozê-lo no topo de um candeeiro! E, no entanto, as culpas caem sobre mim. O que não faço é-me atribuído, e aquilo que fiz, ignoram. Não há justiça nem para o próprio demónio.


A Falsa Expiação e o Mito da Culpabilização Externa

Este conto, de aparência simples, é uma dissecação cirúrgica da natureza humana e da sua incessante busca por bodes expiatórios. O frade, ao invés de assumir a sua fraqueza, invoca uma entidade externa para justificar a sua ação. Não é o primeiro, nem será o último. Desde tempos imemoriais, os homens têm recorrido à desculpabilização para suavizar as suas próprias falhas.

O diabo, nesta narrativa, surge como uma vítima irónica da hipocrisia humana. Criamos arquétipos de maldade para que possam carregar o peso dos nossos próprios pecados. É um exercício de conveniência moral: se há um demónio que nos tenta, então não somos inteiramente responsáveis pelas nossas fraquezas. Se a queda moral pode ser atribuída a um agente externo, então a culpa individual dissolve-se na névoa da tentação.

Mas este raciocínio é uma fraude intelectual. Como bem demonstra o próprio demónio da história, há pecados que nem ele concebe. A esperteza do frade não teve origem na influência satânica, mas sim na sua própria natureza humana, sedenta de prazer e autoindulgência. O ovo não foi cozido pela chama do inferno, mas pelo engenho e pela astúcia de um homem comum.


A Moral da História: O Demónio Como Álibi Existencial

O verdadeiro terror desta história não é o frade e a sua gula, nem sequer o demónio e a sua ironia. O verdadeiro horror reside na facilidade com que os humanos fabricam desculpas. Criamos sistemas de expiação terceirizados, narrativas que nos aliviam do peso da responsabilidade. O "foi o demónio" é apenas um eufemismo para "não quero lidar com a minha própria fraqueza".

E assim seguimos, em pequenas e grandes corrupções diárias, sempre prontos a encontrar um culpado conveniente. O erro não é nosso, mas da sociedade, das circunstâncias, das más influências, do destino, dos astros, de Deus ou do Diabo. Raramente, porém, paramos para admitir que, muitas vezes, o mal que nos aflige vem de dentro, não de fora.

O frade, no fundo, não passava de um homem que queria um ovo e encontrou uma maneira engenhosa de o conseguir. Mas, ao ser confrontado, preferiu a teatralidade da culpa projetada do que a dureza da confissão sincera. E o demónio, injustiçado e perplexo, viu-se na posição absurda de vítima da própria mitologia humana.

Este conto, com a sua ironia cortante, é um espelho das nossas próprias falhas. E a lição que nos deixa é clara: antes de culparmos as sombras, devemos primeiro olhar para o que reside dentro de nós. Porque, no fim de contas, há ovos que cozemos sozinhos, mesmo quando juramos que o diabo nos obrigou a fazê-lo.

Este texto foi escrito com uma história que ouvi na homilia e faz sentido. Somos falhos e não aprendemos se não assumirmos os nossos erros, o que fazemos porque queremos. Escrevo textos desde 2022 os primeiros textos exultam profissionalismo qualidades e momentos partilhados felizes e uma alteração em mim, infelizmente, levou-me a escrever sobre os defeitos e momentos de dor e tristeza. Este é para quem tiver o prazer de ler, reflita bem. Não demonizar tudo e assumir as consequências das decisões.


Porquê este título 

"O Ovo da Sôtora" é um título irónico que joga com a ambiguidade e a surpresa. A palavra sôtora é uma forma coloquial e popular de dizer doutora em português, muitas vezes usada para se referir a professoras, médicas ou outras figuras de autoridade de forma informal.

O uso desse termo num título sobre um frade, um ovo roubado e um demónio injustamente acusado cria um efeito inesperado e quase humorístico. Inicialmente, pode parecer que o texto trata de algo comum e inofensivo, mas à medida que se desenrola, revela-se uma crítica mordaz à tendência humana de evitar assumir as próprias falhas, transferindo a culpa para forças externas. A escolha dessa palavra específica reforça a ironia, pois o título sugere algo familiar e trivial, enquanto o conteúdo do texto é profundo e reflexivo. Esse contraste entre a aparente leveza do título e a seriedade da narrativa prende a atenção do leitor e aumenta o impacto da mensagem.





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