Mensagens

São Bento e Santa Escolástica: Mística, Regra e Ternura no Alvorecer do Monacato Ocidental

 A figura de São Bento de Núrsia (c. 480–547) impõe-se na história da espiritualidade cristã ocidental como um arquétipo do monge legislador, cuja Regula Monachorum moldaria, durante séculos, o tecido espiritual, intelectual e até político da Europa medieval. Contudo, a presença de sua irmã gémea, Santa Escolástica, embora menos documentada pelas fontes históricas, é igualmente densa de significado teológico e espiritual. Juntos, estes dois santos não apenas simbolizam o nascimento do monacato latino, mas também representam, em tensão e complementaridade, as duas faces do espírito cristão: a norma e o afeto, a estrutura e a graça. A Irmandade no Espírito: História e Simbolismo Segundo o Livro II dos Diálogos de São Gregório Magno — a principal fonte hagiográfica sobre São Bento e Santa Escolástica — os gémeos nasceram em Núrsia, na Úmbria, numa época marcada pela decadência do Império Romano do Ocidente e pela emergência de novas formas de organização espiritual e comunitária. Educ...

Pensamentos...

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 Há um ruído constante no mundo. Um zumbido insistente que se confunde com discurso, mas que nada diz. Palavras lançadas ao vento como confetes num funeral – coloridas, inúteis, deslocadas. Vivemos tempos onde falar tornou-se acto automático, quase um reflexo nervoso. A língua move-se antes que o pensamento amadureça. O verbo perdeu peso; flutua, leve e vão, sobre multidões que confundem expressão com sabedoria. É curioso – ou talvez trágico – como aqueles que realmente contemplam, aqueles que se debatem em silêncio com ideias profundas, muitas vezes se retraem. Não por medo de falar, mas por pudor de despejar grandeza em ouvidos que a não merecem. O pensamento verdadeiro, quando nasce, é tímido, é frágil. Precisa de tempo, de espaço, de escuta atenta. Mas o mundo moderno está ocupado demais a berrar para saber ouvir. Há, no entanto, uma raça de faladores profissionais. Não pensadores, não criadores – apenas transmissores de banalidades polidas com arrogância. Estes falam com a con...

Caminhar com a Fé nos Pés e a Paz no Coração

Reflexão de uma peregrina de Fátima Há experiências que não cabem no imediato. Não por falta de palavras, mas por excesso de sentido. A alma precisa de tempo para as digerir, para que o vivido se transforme em verdade interior antes de ser lançado ao mundo. Por isso, escolhi o silêncio, o recolhimento e a contemplação. Não atualizei o blog, não partilhei de imediato os detalhes. Senti que devia deixar o espírito repousar sobre os acontecimentos, como a brisa que passa devagar pelas oliveiras de Fátima. De 8 a 13 de Maio, fui peregrina. Caminhei com o corpo cansado e a alma desperta, rumo ao Santuário de Nossa Senhora de Fátima. Foram cinco dias de estrada, fé e introspecção. O peso físico de cada etapa contrastava com a leveza que se ia instalando por dentro. Durante esse percurso, deixei o telemóvel de lado. Preferi organizar os pensamentos no silêncio da alma, escutar os outros com atenção, cultivar novas amizades com quem partilhei a estrada, as refeições, as bolhas nos pés e as ora...

Banco alimentar...

 Caro leitor  Uma das coisas que gosto além de aprender e evoluir, é a de esclarecer, a pergunta é pertinente e espero que a resposta encontre alguém com uma mente afiada e aberta para a racionalidade "Em que é que os católicos se diferenciam de outras religiões, especialmente no que toca à ajuda social? O Banco Alimentar ajuda todas as instituições?" Resposta : Uma das grandes marcas do catolicismo é a sua visão universal da caridade. A fé católica ensina que todos os seres humanos são filhos de Deus e, por isso, merecem ser tratados com igual dignidade, independentemente da sua religião, nacionalidade, cultura ou condição social. Esta visão tem consequências muito concretas na forma como os católicos se envolvem na ajuda ao próximo: não se limitam a ajudar “os seus”, mas procuram acolher todos os que precisam, sem distinção. É aqui que se começa a perceber uma diferença clara entre o catolicismo e outras tradições religiosas ou grupos fechados que, por vezes, limitam a sua ...

A Subtil Arte de Amar (e Defecar) no Duche: Correspondência com uma Leitora Surpreendente

 Recebo, de tempos a tempos, mensagens no e-mail do blog. Algumas são dúvidas filosóficas; outras, desabafos que transbordam as fronteiras do íntimo para se tornarem quase literatura involuntária. A maior parte são perfeitamente razoáveis — pessoas a tentarem perceber a vida, o amor, o sentido de si mesmas. Mas de quando em quando… aparece uma joia. Desta feita, recebi uma mensagem que me fez pousar o café, engolir em seco e repensar seriamente a história da humanidade desde a invenção da canalização até ao conceito moderno de relacionamento. O e-mail abria com uma simplicidade desarmante: “Olá, sou a F., tenho 22 anos e namoro com uma rapariga de 19. Ontem saímos, ficámos muito bêbedas, fomos tomar duche… e ela fez cocó no duche.” ... Sim, eu também precisei reler. Ela fez cocó no duche. Mas o e-mail não se ficava por aqui. E como quem narra uma fábula urbana de horror afectivo, a leitora prosseguia: “Eu olhei para o fundo do polibã e vi uma bola castanha. Fiquei sem reacção, perg...

Lidei com os meus traumas — quase todos.

 Não há nisto qualquer gesto de triunfo simplista, nem qualquer celebração vazia de superação. A palavra "quase" permanece ali como um vestígio de verdade, a nota dissonante que impede a ilusão da cura total. Porque há dores que não se dissolvem: transmutam-se, integram-se, modulam-se com o tempo, mas continuam a respirar em silêncio nas dobras mais ocultas da memória. Viver com trauma não é viver à margem da vida — é viver com o permanente labor de decifrar os seus ecos. Durante anos, enfrentei esse labor com a delicadeza de quem tenta reconstruir uma porcelana caída. Fiz da minha psique um campo de escavação arqueológica, onde cada fragmento exigia atenção, escuta e linguagem. E esse processo — lento, árduo, por vezes devastador — foi conduzido através de múltiplas práticas terapêuticas, que não foram apenas técnicas: foram, em muitos momentos, actos de ressurreição. A terapia do sonho, herdeira do pensamento junguiano, constituiu um dos primeiros portais de acesso ao incon...

A nobre arte de ser detestada (por quem não faz falta nenhuma)

 Há coisas na vida que são inevitáveis: o IRS, o vizinho que fura paredes ao domingo de manhã, e o facto absolutamente delicioso de que... há pessoas que não gostam de mim. E que bom. Não é ironia — é gratidão verdadeira. Digna de levantar as mãos ao céu com um suspiro de alívio e dizer: “Obrigadinha, meu Deus, por esse livramento com laço e papel de embrulho.” Porque vamos esclarecer uma coisa desde já: nem todos os desafetos são tragédia. Alguns são verdadeiros actos de misericórdia divina. Gente que não gosta de mim? Benditos sejam! Deus viu o que eu não vi, soube o que eles disseram nas costas, percebeu o cheiro da falsidade a três quilómetros de distância e fez o que tinha de fazer: afastou. Cancelou. Rebobinou o filme e tirou-os do elenco da minha vida. E eu? Eu aplaudo. De pé. Com palminhas e um sorriso ligeiramente vitorioso. Mas não nos fiquemos pela espiritualidade. Vamos analisar a coisa com método científico e algum humor clínico. Geralmente, quem não gosta de mim encai...

Hoje...

Vivemos tempos em que a dor se tornou silenciosa, disfarçada de indiferença, agressividade ou pressa. É fácil – demasiado fácil – apontar o dedo, julgar, classificar. E, no entanto, quantas vezes paramos para olhar verdadeiramente? Não com os olhos apressados da razão, mas com a alma atenta da compaixão? Quando a vida nos fere, o primeiro impulso é defender-nos. Criamos couraças, erguemos muros, respondemos com a mesma moeda. Mas essa reação, tão humana, também é o reflexo de uma visão ainda estreita: a de que a dor é sempre pessoal, direcionada, deliberada. E se não for? E se a dor que nos atinge for apenas o eco de uma ferida antiga que não é nossa, mas que passou por nós como um vento agreste? Por trás de cada gesto duro há, muitas vezes, uma história que ninguém escutou. Uma criança que cresceu sem colo, um adolescente que aprendeu a calar porque chorar era fraqueza, um adulto que sobreviveu a perdas sem nunca ter aprendido a digeri-las. Quando alguém nos fere, talvez não o faça po...

O Tempo em que o Alexandre Sorriu

Existiu um tempo, pensava eu, em que a comunicação entre duas pessoas era mais do que troca de palavras – era um encontro de almas. Um tempo em que, ao sentar-me com ela, havia escuta, havia partilha, havia a esperança ingénua de que caminhávamos na mesma direcção. Existiu um tempo em que as nossas conversas eram longas, animadas, até entusiasmadas. Falávamos de ideias, de valores, de crianças e dos nossos papéis no mundo. Existiu um tempo em que pensei que éramos aliadas. Pensava eu. Com o tempo, esse espaço comum foi-se esbatendo. As palavras começaram a pesar. O que antes era cumplicidade tornou-se descompasso. O que era diálogo transformou-se em atrito. Fomos deixando de nos ouvir, de nos compreender. E talvez nos tenhamos ferido – sem intenção, mas com impacto. A confiança ruiu em silêncio, como um edifício antigo que já não aguentava mais o peso do tempo e da mágoa. E o que restou foi apenas distância. Sim, existiu um tempo de partilha. Mas esse tempo virou pesadelo. Acabou. E nã...

Carta de uma Mãe Ferida ao Mundo — e ao Deus que Me Sustém

Sou mãe. Não sou escritora. Não sou figura pública. Não sou ninguém de especial, apenas uma mãe comum, de carne e osso, de coração aberto e alma despedaçada. Escrevo estas palavras não para chamar atenção, nem para procurar compaixão, mas porque a minha dor exige ser dita. Porque não posso ficar em silêncio diante do que aconteceu à minha filha. Ela foi agredida. Covardemente. Brutalmente. Sem razão, sem compaixão, sem humanidade. Feriram-na com murros, pontapés, ódio. Fraturaram-lhe o corpo. Feriram-lhe a face. Deixaram-na no chão como se não fosse gente. Como se a vida dela valesse menos do que um telemóvel ou um passe. E eu, mãe, cheguei depois. Corri. Tremi. Gritei. Quando a vi, não era só ela que estava partida. Era eu também. Porque quando se magoa um filho, a dor não fica só dentro dele, ela espalha-se por todo o corpo da mãe, invade os pulmões, estrangula o peito. Cada nódoa negra, cada ferida aberta no corpo dela é uma ferida em mim, um grito que ecoa dentro do meu peito. Mas ...

Tudo o Que o Amor Tem

Já não me pesa o relógio, nem a ausência do troco. Se há tabaco ou café, é detalhe — não destino. Desaprendi a urgência. Hoje sei que o mundo gira mesmo sem o meu protesto, sem o meu punho no ar, sem o meu nome a ferver na boca dos outros. Não quero o ouro, nem o eco. Quero o silêncio onde cabe o universo. Não me vejam como quem cede — cedo apenas à lucidez. Não brado, não conspiro. Não recito o papel que me escreveram em gritos. A minha luta é outra: desmantelar o tumulto, plantar calma onde havia pressa, beber o instante sem o corromper com planos. Quero paz. Mas não a paz dos mortos — a dos vivos que já não fogem de si. Quero amor. Mas não o que prende — o que abre janelas e diz: fica, se quiseres. Quero tranquilidade. Mas não a do tédio — a da alma que, depois da tormenta, descobre que não precisa vencer para, enfim, estar inteira. Já não quero cópias — nem de mim, nem dos outros, nem daquilo que a vida me tentou vender como felicidade. Já não suporto o gesto ensaiado, a palavra qu...

O Valor Inquebrantável da Mulher: Um Manifesto contra a Violência e pela Dignidade

 Num mundo onde ainda ecoam vozes que tentam silenciar a essência feminina, onde o amor, tantas vezes, é confundido com posse, e o companheirismo deturpado em controle, é urgente — e vital — afirmar com clareza: nenhuma mulher deve permitir que a sua dignidade seja corroída pelo veneno da violência, seja ela física, emocional ou psicológica. A violência doméstica, muitas vezes silenciosa, camuflada sob o disfarce do “cuidado” ou do “ciúme justificado”, é uma chaga que alastra sem alarde, mas destrói com fúria. Não é amor quem humilha. Não ama aquele que rebaixa, controla, manipula ou sufoca. Amor não é cárcere nem contrato de obediência. Amor é liberdade acompanhada, é respeito pela individualidade, é olhar o outro e vê-lo inteiro, sem tentar diminuí-lo para caber na estreiteza da própria insegurança. A mulher não foi criada para ser sombra, eco ou adorno. Ela é luz própria, pensamento vivo, identidade plena. Quando um homem tenta moldá-la segundo os seus próprios moldes de domínio...

Tento viver como cristã…

 Tento viver como cristã. Não por obrigação, nem por medo. Tento porque amo. E porque acredito — acredito que o amor é a base de tudo, mesmo quando tudo parece desabar. Ser cristã é uma luta silenciosa, constante. É um exercício diário de amar. Amar quando é fácil, sim — mas sobretudo quando é difícil. Amar quando não há retorno, quando o coração pesa, quando os olhos veem a falsidade e a alma sente a ferida. Amar até mesmo os inimigos, os visíveis e os invisíveis. Aqueles que nos enfrentam e aqueles que se disfarçam de amigos. Esses últimos doem mais. Mas ainda assim, tento amar. Porque foi isso que Cristo fez. Há dias em que os sentimentos gritam, em que a mágoa se levanta como mar revolto. Nessas horas, calo o mundo para escutar Deus. Respiro fundo, seguro firme na oração, e lembro-me: amar não é sentir sempre — é decidir. Decidir fazer o bem, mesmo quando tudo em mim quer retribuir o mal. Isso é cruz. Isso é Cristo. Isso é cristianismo. E agora chega o tempo do Crisma. Tempo de...

A Missa Começa em Ti

Chegámos nus, é verdade. E nus partiremos. Entre esses dois silêncios — o do início e o do fim — desenrola-se o mistério da vida. Um sopro, uma travessia, uma sucessão de dias que parecem eternos e, ao mesmo tempo, se desfazem como areia entre os dedos. Tudo o que acumulamos, tudo o que julgamos possuir, tudo o que defendemos com unhas e dentes, será um dia apenas pó, ou nem isso — lembrança efémera na mente de quem continua, por pouco tempo, a caminhar após nós. Então porquê tanto ódio, tanta inveja? Porquê a sede insaciável de poder, de vaidade, de ostentação? Por que razão nos esquecemos tão frequentemente da nossa pequenez essencial, da fragilidade intrínseca à condição humana? A verdade é simples, mas não simplista: estamos doentes de ego. Vivemos aprisionados numa cultura que idolatra o invólucro e despreza o conteúdo. Uma sociedade onde a estética venceu a ética, onde o parecer se sobrepôs ao ser. O que veste, o que mostra, o que exibe, é mais importante do que o que sente, o qu...

Recomeço em Silêncio

 Em primeiro lugar, permitam-me pedir desculpa pela ausência. Estavam, talvez, habituados a encontrar aqui, todos os dias, uma nova partilha — fosse ela uma narrativa intrincada, real ou fantasiada, um poema, uma descrição, um fragmento das minhas vivências. Esta pausa não foi planeada, mas foi necessária. Um intervalo imposto pela vida, por aquilo que não se prevê, não se controla, apenas se enfrenta. Estive a peregrinar para Fátima. Cinco dias a caminhar, fisicamente e interiormente. Cinco dias em que o corpo se resigna à dor e à exaustão, e a alma se abre ao silêncio, ao sentido, ao outro. Partilhei o caminho com desconhecidos que, pouco a pouco, se foram tornando reflexos de mim: espelhos que devolvem histórias, risos, lágrimas e fé. Havia filas — para comer, para usar a casa de banho, para descansar. E mesmo esse descanso, escasso e precário, era um luxo que se saboreava com gratidão. Nesses dias, o tempo era um bem raro e precioso. Aqueles minutos roubados ao cansaço serviam ...

Entre a dor que se sente e a que se ouve

 Há dias em que o corpo fala mais alto do que o coração consegue sussurrar. Dias em que, entre a frustração acumulada e uma dor teimosa — como aquela que se instala nos pés e não nos larga —, tudo se torna mais pesado, mais tenso, mais difícil de traduzir em palavras suaves. Sou, por natureza, frontal. Digo logo o que penso, o que sinto. E por vezes, nesse impulso sincero de exteriorizar o desconforto que me vai por dentro, a minha voz pode ganhar um tom mais áspero, mais urgente, quase como um grito mudo de quem precisa que o mundo pare um instante para respirar. Mas o tom — esse tom — não é contra ninguém. É apenas o eco da minha luta interior. O meu desconforto não é com quem está ao meu lado, mas com o que me corrói por dentro… e por baixo: a frustração de não controlar tudo e, naquele momento, o simples facto de os meus pés doerem como se carregassem o peso de todas as exigências do dia. É difícil quando, além da dor, carregamos também o estigma. Quando a forma como dizemos al...

Silêncio, Caminho e Perdão: Lições de uma Peregrina

Parti no dia 8, com o silêncio no bolso e a alma carregada de perguntas. Cheguei ao destino no dia 12 e regressei a casa na madrugada do dia 13 – com os pés feridos, o coração pleno e uma bagagem invisível feita de fé, amizade e revelações. Decidi não publicar nada durante a caminhada. Não por desinteresse, mas por uma escolha consciente: queria que o caminho fosse meu, inteiro, sem filtros nem ruído. Usei o telemóvel apenas para o essencial – falar com os meus filhos, com o meu marido, e partilhar algumas imagens no Facebook, marcos singelos de passagem e testemunhos da jornada. Durante a peregrinação, o corpo cansava, mas era a alma que despertava. Rezei, calei-me, pensei, escutei. Fiz amizades que não nasceram do acaso, mas foram forjadas como o ferro sob o fogo: no suor, no sangue e nas lágrimas. Entre uma subida difícil e uma descida traiçoeira, numa conversa com uma jovem que me lembrava a minha filha, disse algo que me saiu tão naturalmente como respirar: “Sabes, ninguém fala ma...

Com os Pés em Ferida: A Peregrinação da Alma

Ser peregrina é nascer todos os dias dentro de um caminho que não conhece atalhos. É caminhar com o coração descalço, mesmo quando os pés sangram. É vestir-se de esperança quando a alma se rasga nas bordas do percurso e, ainda assim, continuar. Caminhar cansada é carregar um corpo exausto e, mesmo assim, encontrar no espírito uma centelha viva — aquela que arde, mas não se consome. As bolhas nos pés não são meras lesões: são mapas. Marcas inscritas pelo tempo, pela persistência, pela fé que recusa extinguir-se. E entre os dedos, onde já não há pele, há nervo exposto — sensibilidade pura, verdade sem véu. É caminhar com os pés em ferida. Não apenas com os pés físicos — mas com os da alma, ferida de tanto amar, de tanto esperar, de tanto prosseguir sem certezas. É o passo dado mesmo sabendo que a dor virá. É o chão pisado com temor, mas também com fé. A ferida não é apenas dor. É portal. Chamamento. Ventre aberto onde renasce aquilo que verdadeiramente somos. É o espaço onde a alma se re...

As Faces da Dor: Corpo e Alma em Confronto

 A dor, esse fenómeno universal e inescapável, manifesta-se de formas distintas — no corpo e na alma — e em ambas, tem o poder de moldar-nos com a força crua de uma tempestade interior. No entanto, a dor física, apesar da sua ferocidade imediata, é muitas vezes mais compreensível, mais visível, mais nomeável. Ela rasga, queima, pulsa, mas obedece a uma lógica quase mecânica: onde dói, porquê dói, como tratar. Já a dor da alma, essa, insidiosa e silenciosa, infiltra-se sem pedir licença, camufla-se de saudade, de angústia, de vazio — e é precisamente aí que reside a sua brutalidade. A dor física, por paradoxal que pareça, possui um papel quase redentor. Ela ensina-nos a resistência. Obriga-nos a perseverar, a desenvolver resiliência num sentido quase primal. Quando o corpo sofre, aprendemos os limites da nossa carne, mas também a força que reside nela. Há um certo consolo na dor que sangra, pois nela há um princípio, um meio e, na maioria das vezes, um fim. O corpo sofre e, na recup...

Entre a Essência e o Horizonte: A Mulher que Caminha

 Sou mulher. Não por acaso ou circunstância, mas por uma inscrição profunda na tessitura do ser. Caminho pela vida com os pés fincados na realidade e os olhos voltados para o horizonte — onde habita a esperança, onde ressoa a fé, onde floresce o amor. A condição humana, dizia Kierkegaard, é atravessada por angústias, escolhas e projectos. Eu escolho, todos os dias, viver com intenção. Sou feita de virtudes, sim, mas também de falhas — e é precisamente na consciência delas que reside a minha força. Não busco a perfeição, mas a inteireza. Não quero ser imune ao erro, mas sensível à aprendizagem. Na maternidade descubro-me espelho e semente. Nos vínculos afectivos — com o meu marido, com os meus filhos, com os meus amigos — descubro a ética da presença, a arte da escuta, o poder transformador da palavra e do silêncio. Ser mulher é ser ponte: entre o íntimo e o mundo, entre o cuidado e o desejo, entre a razão que pondera e o coração que sente. Acredito na esperança como acto de resistê...

Minha decisão.

Nunca uma decisão minha provocou tamanha estupefacção, tão ruidosa comoção, tão encenada indignação. Poder-se-ia pensar que anunciei o fim da democracia ou a derrocada dos mercados financeiros. Mas não. Simplesmente anunciei, com a serenidade dos que sabem ao que vão, que me converti. Que abracei a fé católica. Que escolhi, em consciência e com lucidez, viver segundo princípios que muitos citam e poucos seguem. E foi então que o mundo — ou melhor, certos círculos do mundo — se desfez em tremores e tremeliques. Os apóstolos do relativismo moral, os catedráticos da incoerência, os padres do politicamente conveniente, apressaram-se a opinar, a zombar, a diagnosticar. Aparentemente, uma pessoa já não pode mudar de vida sem que isso perturbe o sistema nervoso alheio. Pois fiquem, então, perturbados. A mim, Deus disse: "Minha filha amada, não te dês ao espectáculo da disputa. Não grites, não batas o pé, não envies ninguém para sítio algum — nem verbalmente nem mentalmente, e sabemos que...

Entre o que encanta e o que permanece: a verdade silenciosa dos afectos

Há uma diferença abismal entre ser desejado e ser valorizado. Entre o toque que arrepia e o gesto que acolhe. Entre quem olha para o corpo e quem vê a alma. Nos dias de hoje, em que tudo se consome com pressa — até os sentimentos — torna-se urgente reaprender o que significa amar verdadeiramente, e, sobretudo, escolher com consciência quem deixamos entrar na nossa vida. Qualquer homem ou mulher pode oferecer-te uma presença momentânea, um sorriso encantador, uma química arrebatadora. Mas quantos, de facto, te oferecem paz? Quantos te respeitam quando ninguém está a ver? Quantos escolhem ser leais não por obrigação, mas por princípio? Vivemos tempos em que as aparências valem mais do que os valores — e é fácil iludir-se com gestos bonitos, quando o interior permanece por revelar. A beleza atrai, sim. É natural, é humana. Mas a beleza, por si só, é efémera — desgasta-se com o tempo, perde a força quando não encontra profundidade. E quando a aparência se esgota, o que sobra? É aí que se r...

A complexidade de habitar-se: o silêncio que grita por dentro

 Habitar-se é uma das tarefas mais árduas da existência. Viver consigo é um exercício constante de confronto, de aceitação imperfeita e, sobretudo, de resistência. Resistir à tentação de fugir, de calar-se diante do tumulto interior, de disfarçar a tempestade com sorrisos ocasionais. É um acto solitário, mas inevitável, essa convivência com o próprio ser — como se todos os dias despertássemos ao lado de uma versão nossa que ainda não compreendemos totalmente. Não nos ensinaram a ouvir o que não é dito. Crescemos a correr atrás de significados prontos, de frases feitas, de fórmulas para a felicidade. Mas ninguém nos advertiu que a dor mais funda não se grita, apenas se carrega. Vai-se alojando, sorrateiramente, em gestos pequenos, em silêncios densos, em olhares perdidos. E quando damos por isso, já estamos ocupados demais a sobreviver para conseguir verdadeiramente viver. A escrita, nesse caos, surge não como escolha, mas como salvação. Escreve-se para não se desaparecer. Escreve-s...

Peregrina – Cântico de Alma e Caminho

 Vou, de coração cheio, e com esperança vou, Levando em silêncio o que o corpo não diz, Entre vales de sombra e céus onde ecoou A prece antiga que ainda me conduz. Sou peregrina — de corpo, alma e essência, Não de mapas ou passos apenas contados. Caminho por fé, por busca, por ausência, Por votos calados, por sonhos velados. Antes de ir, abraço os meus filhos Com a força de quem talvez não volte, E nos seus olhos deixo abrigo, Caso o destino me leve para longe, sem saber se volto. Beijo o meu amor — meu companheiro, Meu porto firme, meu chão sereno. Levo no peito o toque derradeiro De um amor inteiro, profundo e pleno. Despeço-me, pois não sei se voltarei, Mas vou inteira, na dor e na clareza, Porque quem parte assim, como eu partirei, Vai com fé viva e com a alma acesa. A estrada é dura, sim — e bendita. Refresca a alma, rasga o orgulho, Mostra onde a força é infinita E onde o medo se desfaz em entulho. Cada bolha no pé é uma oração, Cada cansaço, um espelho do ser. E em cada pass...