Mensagens

O que é bom corre (e às vezes voa)

Crónica de uma mãe maravilhada, emocionalmente lúcida, exausta com dignidade e com ascendente demoníaco assumido. O tempo não anda — dispara. Não caminha em linha recta, nem avisa quando vai acelerar. Não tem modos. É um atropelo invisível. Quando dei por mim, já estamos a fechar um ciclo. E o que sobra é uma saudade daquelas boas: sentida, clara, com sabor a missão cumprida. O meu filho já sente falta da professora. E eu também. Não é saudade pela rotina — vamos ser honestos, a rotina é, muitas vezes, um ritual matinal de sobrevivência e caos disfarçado de normalidade. É o circo logístico de todos os dias: mochila feita à pressa, meia perdida, lanche renegociado, e aquele olhar mortiço que só uma mãe em modo automático conhece. Mas existe algo especial. Algo que só se encontra quando o mundo conspira — para o bem. Encontrámos uma professora, uma escola, um lugar que nos aceitou, aceita como somos. Sem a necessidade de teatrinhos, sem máscaras, sem ter de fingir que eu sou a mãe perfei...

Uma Semana Sagrada em Mim

 Esta semana não começou apenas com um novo ciclo de dias, mas com um renovar da alma. Há gestos que, embora simples, se tornam fundações de tudo o que somos — e o primeiro tem sido este: oferecer o meu dia ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Não como um ritual vazio, mas como um acto vivo de entrega consciente. Entrego-lhes as minhas alegrias, sim, mas também os meus medos, as dores que teimam em permanecer em silêncio, e as tribulações que tantas vezes se disfarçam de pequenas inquietações. Neste acto de entrega reside uma sabedoria antiga: reconhecer que não caminho só. Quando peço ao Espírito Santo que fortaleça os seus dons em mim — sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus — não o faço apenas para mim, mas para que, em mim, o outro também encontre abrigo. Tenho buscado com mais intenção que cada pessoa que se cruza no meu caminho se sinta vista, ouvida, acolhida. Que o meu olhar não seja julgamento, mas espelho; que as minhas palavras nã...

Entre Máscaras, Verdades e Sarcasmos:

 Reflexão de uma Mulher Inteira Há algo de sublime — e simultaneamente desconfortável — em conviver com quem não usa máscaras. Desconcertante, talvez, para os que se habituaram à hipocrisia social mascarada de polidez. Um verdadeiro privilégio, para os que, como eu, preferem a crueza da autenticidade à seda fingida da dissimulação. Conviver com seres autênticos, imperfeitos, pecadores, sinceros, humanos — inteiramente humanos — é respirar ar puro num mundo viciado em aparências. Gente que sangra, que falha, que ri alto, que chora quando ninguém vê, que tropeça na própria sombra e ainda assim continua, com dignidade, a sua marcha imperfeita. Gente que não se envergonha de ser gente. Mas o melhor de tudo — e talvez a mais doce liberdade — é poder ser eu. Inteira. Com todas as minhas camadas, contradições, quedas e epifanias. Ser eu, com este sentido de humor que muitos não compreendem — sarcástico, por vezes negro, frequentemente ácido, sempre acutilante. Um humor que serve tanto com...

Pentecostes.

  Pentecostes: quando o Céu desce à terra e a terra se abre ao Céu Há momentos na história da fé que não são apenas narrativas passadas, mas contínuos chamamentos para que despertemos o que em nós dorme. Pentecostes é, talvez, o mais vibrante desses momentos. Não se trata apenas de um episódio em Actos dos Apóstolos. Trata-se de um acontecimento eterno, vivo, perene. Um sopro que atravessa séculos e civilizações para encontrar morada nos corações sedentos de verdade, liberdade e comunhão. Naquele dia singular, reunidos no Cenáculo, os discípulos não esperavam uma tempestade de fogo, nem línguas que falassem em uníssono com a diversidade do mundo. Eles esperavam, talvez, apenas resistir à dor da ausência. Mas o Espírito não veio para que resistissem. Veio para que renascessem. Não lhes trouxe apenas conforto, trouxe-lhes missão. Não os envolveu apenas com ternura, mas com ousadia. E isso muda tudo. Porque é precisamente isso que o Espírito faz: transforma. Mas não uma transformação ...

A Verdade Roubada: As Sombras Onde Crescem as Mentiras

O ser humano, criatura de engenho e abismo, é capaz de actos de sublime beleza, mas também de crimes silenciosos, de torpezas tão subtis que se esgueiram pelos interstícios da consciência alheia. Não é nas grandes proclamações, nem sob o sol da evidência, que se constrói o mal mais profundo — é nas sombras. É aí, nas costas dos outros, no silêncio malicioso e nos sorrisos disfarçados, que se moldam as mentiras mais eficazes: aquelas que, ditas com persistência, começam a parecer verdades. Aquelas que, reiteradas na ausência do visado, tornam-se a única narrativa possível para os que apenas ouvem uma versão, para os que, sem saber, passam a carregar uma verdade adulterada como se fosse sua. Há algo de perversamente engenhoso nesta capacidade: transformar palavras falsas em realidades sociais. Uma mentira, quando dita em segredo e repetida com ar grave, adquire uma gravidade usurpada. Como uma mancha num tecido branco, infiltra-se subtilmente no tecido da percepção colectiva. Não precisa...

A Estética do Julgamento: Uma Anatomia do Apontar

Vivemos mergulhadas num tempo de estrondosa superficialidade moral, onde o ruído substitui o pensamento e a pressa do julgamento eclipsa qualquer tentativa séria de compreensão. A sociedade contemporânea, engalanada de avanços tecnológicos e conquistas materiais, revela, contudo, uma miséria espiritual que se expressa no gesto automático de apontar o dedo, julgar, condenar. Este gesto tornou-se quotidiano, reflexo, pulsão de um mundo que perdeu a capacidade de introspecção e substituiu a empatia pela opinião, a escuta pelo veredicto, a complexidade pelo simplismo redutor. É curioso observar como se tornou comum ouvir vozes a lamentar a perda de valores, a rarefacção da empatia, o declínio da generosidade, como se tais constatações, proferidas com um certo ar de superioridade e desencanto, fossem elas próprias actos redentores. Aponta-se a ferocidade do mundo com um certo deleite, como quem se coloca fora dele, incólume, nobre, ítalo-moralmente intacta. Fala-se da humanidade como se não...

Morro. Todos os dias. E não é figura de estilo.

 Adormeço? Não. Eu morro. Todos os dias. Às vezes sentada. Outras vezes a caminho do banho. Houve uma terça-feira em que morri com uma chávena na mão e o nome de Kierkegaard na boca. Nem tive tempo de acabar o pensamento — ou a chávena. O que me mata não é um grande drama — é o milagre quotidiano de tentar fazer tudo. E o mais estranho é que, na maior parte dos dias, quase consigo. Sim, sou uma daquelas criaturas raras, em vias de extinção, que consegue manter uma vida de estudo autodidata em psicologia, teologia, filosofia, enquanto ajuda os outros, vai à missa, faz voluntariado, cozinha (às vezes bem), faz agachamentos com a mesma fé com que reza, e ainda tem tempo para discutir com o marido — que, aliás, é o mesmo homem com quem namorei pela primeira vez. Eu sei. É quase imoral. Sou um paradoxo com pés. Ou com sapatilhas de corrida, vá. Porque sim, também gosto de mexer o corpo. Transpiro ideias e glúteos. O meu dia começa com força e termina em colapso. No início da manhã, sou ...

A Anatomia da Dor: Da Traição à Redenção

 Há momentos na vida que nos dividem para sempre. Não pela sua violência exterior, mas pela força sísmica com que reconfiguram o nosso interior. A traição é um desses momentos. Não é apenas um acto — é uma fractura na estrutura invisível da confiança. Um colapso moral, emocional e, por vezes, espiritual. É a negação do pacto invisível que une duas almas, sejam elas amantes, amigos, familiares ou companheiros de jornada. Onde existia um lugar sagrado, uma casa feita de palavras e gestos, instala-se o vazio. Um vazio que ecoa. A traição é plural. No amor, manifesta-se como infidelidade — física ou emocional —, e transforma o corpo antes desejado num estranho, e o lar partilhado num cenário de guerra surda. Na amizade, é o abandono súbito, a confidência exposta, o silêncio cúmplice do que não nos defende. Na política, é a promessa renegada, o jogo de interesses que substitui a ética pelo oportunismo. E há ainda a mais dolorosa de todas: a auto-traição — quando nos negamos por medo, qu...

Mais do que Sonhei

(crónica íntima de uma mulher inteira) Perguntam-me, às vezes com aquele olhar de quem antecipa desilusões mansas ou frustrações bem disfarçadas: — Realizaste os teus sonhos? E a pergunta, aparentemente inocente, cai-me no peito como um eco antigo. Não sei respondê-la com uma frase curta. Não cabe num sim. Nem num não. Cabe, talvez, numa vida inteira. Ou, se me permitem, neste texto. Não, não realizei os meus sonhos. Realizei mais. Muito mais. Sonhar é por vezes um acto tímido, quase defensivo — um esboço da esperança, comedida, cautelosa, para não ferir o coração. Mas viver… ah, viver é outra coisa. Viver é cair de olhos abertos no imprevisível e descobrir que há abismos que são voo. É tropeçar no inesperado e dar-se conta de que o milagre mora onde nunca ousámos procurar. Nunca sonhei amar assim — e muito menos ser amada como sou. Não por falta de desejo, mas por uma espécie de cepticismo elegante, desses que nos servem de armadura. Esperava talvez alguma paixão fugaz, intensa como u...

São Bento e Santa Escolástica: Mística, Regra e Ternura no Alvorecer do Monacato Ocidental

 A figura de São Bento de Núrsia (c. 480–547) impõe-se na história da espiritualidade cristã ocidental como um arquétipo do monge legislador, cuja Regula Monachorum moldaria, durante séculos, o tecido espiritual, intelectual e até político da Europa medieval. Contudo, a presença de sua irmã gémea, Santa Escolástica, embora menos documentada pelas fontes históricas, é igualmente densa de significado teológico e espiritual. Juntos, estes dois santos não apenas simbolizam o nascimento do monacato latino, mas também representam, em tensão e complementaridade, as duas faces do espírito cristão: a norma e o afeto, a estrutura e a graça. A Irmandade no Espírito: História e Simbolismo Segundo o Livro II dos Diálogos de São Gregório Magno — a principal fonte hagiográfica sobre São Bento e Santa Escolástica — os gémeos nasceram em Núrsia, na Úmbria, numa época marcada pela decadência do Império Romano do Ocidente e pela emergência de novas formas de organização espiritual e comunitária. Educ...

Pensamentos...

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 Há um ruído constante no mundo. Um zumbido insistente que se confunde com discurso, mas que nada diz. Palavras lançadas ao vento como confetes num funeral – coloridas, inúteis, deslocadas. Vivemos tempos onde falar tornou-se acto automático, quase um reflexo nervoso. A língua move-se antes que o pensamento amadureça. O verbo perdeu peso; flutua, leve e vão, sobre multidões que confundem expressão com sabedoria. É curioso – ou talvez trágico – como aqueles que realmente contemplam, aqueles que se debatem em silêncio com ideias profundas, muitas vezes se retraem. Não por medo de falar, mas por pudor de despejar grandeza em ouvidos que a não merecem. O pensamento verdadeiro, quando nasce, é tímido, é frágil. Precisa de tempo, de espaço, de escuta atenta. Mas o mundo moderno está ocupado demais a berrar para saber ouvir. Há, no entanto, uma raça de faladores profissionais. Não pensadores, não criadores – apenas transmissores de banalidades polidas com arrogância. Estes falam com a con...

Caminhar com a Fé nos Pés e a Paz no Coração

Reflexão de uma peregrina de Fátima Há experiências que não cabem no imediato. Não por falta de palavras, mas por excesso de sentido. A alma precisa de tempo para as digerir, para que o vivido se transforme em verdade interior antes de ser lançado ao mundo. Por isso, escolhi o silêncio, o recolhimento e a contemplação. Não atualizei o blog, não partilhei de imediato os detalhes. Senti que devia deixar o espírito repousar sobre os acontecimentos, como a brisa que passa devagar pelas oliveiras de Fátima. De 8 a 13 de Maio, fui peregrina. Caminhei com o corpo cansado e a alma desperta, rumo ao Santuário de Nossa Senhora de Fátima. Foram cinco dias de estrada, fé e introspecção. O peso físico de cada etapa contrastava com a leveza que se ia instalando por dentro. Durante esse percurso, deixei o telemóvel de lado. Preferi organizar os pensamentos no silêncio da alma, escutar os outros com atenção, cultivar novas amizades com quem partilhei a estrada, as refeições, as bolhas nos pés e as ora...

Banco alimentar...

 Caro leitor  Uma das coisas que gosto além de aprender e evoluir, é a de esclarecer, a pergunta é pertinente e espero que a resposta encontre alguém com uma mente afiada e aberta para a racionalidade "Em que é que os católicos se diferenciam de outras religiões, especialmente no que toca à ajuda social? O Banco Alimentar ajuda todas as instituições?" Resposta : Uma das grandes marcas do catolicismo é a sua visão universal da caridade. A fé católica ensina que todos os seres humanos são filhos de Deus e, por isso, merecem ser tratados com igual dignidade, independentemente da sua religião, nacionalidade, cultura ou condição social. Esta visão tem consequências muito concretas na forma como os católicos se envolvem na ajuda ao próximo: não se limitam a ajudar “os seus”, mas procuram acolher todos os que precisam, sem distinção. É aqui que se começa a perceber uma diferença clara entre o catolicismo e outras tradições religiosas ou grupos fechados que, por vezes, limitam a sua ...

A Subtil Arte de Amar (e Defecar) no Duche: Correspondência com uma Leitora Surpreendente

 Recebo, de tempos a tempos, mensagens no e-mail do blog. Algumas são dúvidas filosóficas; outras, desabafos que transbordam as fronteiras do íntimo para se tornarem quase literatura involuntária. A maior parte são perfeitamente razoáveis — pessoas a tentarem perceber a vida, o amor, o sentido de si mesmas. Mas de quando em quando… aparece uma joia. Desta feita, recebi uma mensagem que me fez pousar o café, engolir em seco e repensar seriamente a história da humanidade desde a invenção da canalização até ao conceito moderno de relacionamento. O e-mail abria com uma simplicidade desarmante: “Olá, sou a F., tenho 22 anos e namoro com uma rapariga de 19. Ontem saímos, ficámos muito bêbedas, fomos tomar duche… e ela fez cocó no duche.” ... Sim, eu também precisei reler. Ela fez cocó no duche. Mas o e-mail não se ficava por aqui. E como quem narra uma fábula urbana de horror afectivo, a leitora prosseguia: “Eu olhei para o fundo do polibã e vi uma bola castanha. Fiquei sem reacção, perg...

Lidei com os meus traumas — quase todos.

 Não há nisto qualquer gesto de triunfo simplista, nem qualquer celebração vazia de superação. A palavra "quase" permanece ali como um vestígio de verdade, a nota dissonante que impede a ilusão da cura total. Porque há dores que não se dissolvem: transmutam-se, integram-se, modulam-se com o tempo, mas continuam a respirar em silêncio nas dobras mais ocultas da memória. Viver com trauma não é viver à margem da vida — é viver com o permanente labor de decifrar os seus ecos. Durante anos, enfrentei esse labor com a delicadeza de quem tenta reconstruir uma porcelana caída. Fiz da minha psique um campo de escavação arqueológica, onde cada fragmento exigia atenção, escuta e linguagem. E esse processo — lento, árduo, por vezes devastador — foi conduzido através de múltiplas práticas terapêuticas, que não foram apenas técnicas: foram, em muitos momentos, actos de ressurreição. A terapia do sonho, herdeira do pensamento junguiano, constituiu um dos primeiros portais de acesso ao incon...

A nobre arte de ser detestada (por quem não faz falta nenhuma)

 Há coisas na vida que são inevitáveis: o IRS, o vizinho que fura paredes ao domingo de manhã, e o facto absolutamente delicioso de que... há pessoas que não gostam de mim. E que bom. Não é ironia — é gratidão verdadeira. Digna de levantar as mãos ao céu com um suspiro de alívio e dizer: “Obrigadinha, meu Deus, por esse livramento com laço e papel de embrulho.” Porque vamos esclarecer uma coisa desde já: nem todos os desafetos são tragédia. Alguns são verdadeiros actos de misericórdia divina. Gente que não gosta de mim? Benditos sejam! Deus viu o que eu não vi, soube o que eles disseram nas costas, percebeu o cheiro da falsidade a três quilómetros de distância e fez o que tinha de fazer: afastou. Cancelou. Rebobinou o filme e tirou-os do elenco da minha vida. E eu? Eu aplaudo. De pé. Com palminhas e um sorriso ligeiramente vitorioso. Mas não nos fiquemos pela espiritualidade. Vamos analisar a coisa com método científico e algum humor clínico. Geralmente, quem não gosta de mim encai...

Hoje...

Vivemos tempos em que a dor se tornou silenciosa, disfarçada de indiferença, agressividade ou pressa. É fácil – demasiado fácil – apontar o dedo, julgar, classificar. E, no entanto, quantas vezes paramos para olhar verdadeiramente? Não com os olhos apressados da razão, mas com a alma atenta da compaixão? Quando a vida nos fere, o primeiro impulso é defender-nos. Criamos couraças, erguemos muros, respondemos com a mesma moeda. Mas essa reação, tão humana, também é o reflexo de uma visão ainda estreita: a de que a dor é sempre pessoal, direcionada, deliberada. E se não for? E se a dor que nos atinge for apenas o eco de uma ferida antiga que não é nossa, mas que passou por nós como um vento agreste? Por trás de cada gesto duro há, muitas vezes, uma história que ninguém escutou. Uma criança que cresceu sem colo, um adolescente que aprendeu a calar porque chorar era fraqueza, um adulto que sobreviveu a perdas sem nunca ter aprendido a digeri-las. Quando alguém nos fere, talvez não o faça po...

O Tempo em que o Alexandre Sorriu

Existiu um tempo, pensava eu, em que a comunicação entre duas pessoas era mais do que troca de palavras – era um encontro de almas. Um tempo em que, ao sentar-me com ela, havia escuta, havia partilha, havia a esperança ingénua de que caminhávamos na mesma direcção. Existiu um tempo em que as nossas conversas eram longas, animadas, até entusiasmadas. Falávamos de ideias, de valores, de crianças e dos nossos papéis no mundo. Existiu um tempo em que pensei que éramos aliadas. Pensava eu. Com o tempo, esse espaço comum foi-se esbatendo. As palavras começaram a pesar. O que antes era cumplicidade tornou-se descompasso. O que era diálogo transformou-se em atrito. Fomos deixando de nos ouvir, de nos compreender. E talvez nos tenhamos ferido – sem intenção, mas com impacto. A confiança ruiu em silêncio, como um edifício antigo que já não aguentava mais o peso do tempo e da mágoa. E o que restou foi apenas distância. Sim, existiu um tempo de partilha. Mas esse tempo virou pesadelo. Acabou. E nã...

Carta de uma Mãe Ferida ao Mundo — e ao Deus que Me Sustém

Sou mãe. Não sou escritora. Não sou figura pública. Não sou ninguém de especial, apenas uma mãe comum, de carne e osso, de coração aberto e alma despedaçada. Escrevo estas palavras não para chamar atenção, nem para procurar compaixão, mas porque a minha dor exige ser dita. Porque não posso ficar em silêncio diante do que aconteceu à minha filha. Ela foi agredida. Covardemente. Brutalmente. Sem razão, sem compaixão, sem humanidade. Feriram-na com murros, pontapés, ódio. Fraturaram-lhe o corpo. Feriram-lhe a face. Deixaram-na no chão como se não fosse gente. Como se a vida dela valesse menos do que um telemóvel ou um passe. E eu, mãe, cheguei depois. Corri. Tremi. Gritei. Quando a vi, não era só ela que estava partida. Era eu também. Porque quando se magoa um filho, a dor não fica só dentro dele, ela espalha-se por todo o corpo da mãe, invade os pulmões, estrangula o peito. Cada nódoa negra, cada ferida aberta no corpo dela é uma ferida em mim, um grito que ecoa dentro do meu peito. Mas ...

Tudo o Que o Amor Tem

Já não me pesa o relógio, nem a ausência do troco. Se há tabaco ou café, é detalhe — não destino. Desaprendi a urgência. Hoje sei que o mundo gira mesmo sem o meu protesto, sem o meu punho no ar, sem o meu nome a ferver na boca dos outros. Não quero o ouro, nem o eco. Quero o silêncio onde cabe o universo. Não me vejam como quem cede — cedo apenas à lucidez. Não brado, não conspiro. Não recito o papel que me escreveram em gritos. A minha luta é outra: desmantelar o tumulto, plantar calma onde havia pressa, beber o instante sem o corromper com planos. Quero paz. Mas não a paz dos mortos — a dos vivos que já não fogem de si. Quero amor. Mas não o que prende — o que abre janelas e diz: fica, se quiseres. Quero tranquilidade. Mas não a do tédio — a da alma que, depois da tormenta, descobre que não precisa vencer para, enfim, estar inteira. Já não quero cópias — nem de mim, nem dos outros, nem daquilo que a vida me tentou vender como felicidade. Já não suporto o gesto ensaiado, a palavra qu...