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As Santinhas do Story: Evangelho Segundo o Like

 Hoje, falar com alguém ao telemóvel pode ser um acto de arqueologia emocional. A minha prima, do outro lado da linha, mandou uma daquelas frases que se alojam no peito como uma farpa. E eu, com a mente em ebulição — uma espécie de Chernobyl criativa —, escrevi este texto. Não por vaidade. Por higiene mental. Porque o mundo está doente. Espiritualmente intoxicado. E alguém tem de dizer a verdade, mesmo que doa. Vivemos tempos onde toda a gente quer ser alguém — mas não alguém comum, não. Alguém que se destaca. E como já ninguém quer trabalhar com o suor da testa (cuidado com o botox), então opta-se por caminhos mais... etéreos. Já não se busca santidade pela renúncia, mas pela ostentação. Já não se jejua, limpa-se o karma. Já não se sofre em silêncio, agora faz-se reels a chorar. E se não for possível ser canonizada, ao menos que se seja uma pastora, uma bruxa, uma guia espiritual com ascendente em peixe e tenda montada no Instagram. O sofrimento virou uma estética. O misticismo, u...

Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo.

 A Mesa que nivela, o Corpo que transforma, o Amor que permanece Hoje é feriado — mas não é um simples dia de pausa. É um dia que suspende o tempo e nos convida a parar de verdade, não apenas o corpo, mas a alma. Celebramos a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, ou como ecoa nos corações marcados pela fé: Corpus Christi. Um dia que não é apenas para lembrar, mas para presenciar — porque nesta festa não evocamos apenas um gesto simbólico de Jesus, mas celebramos o mistério da Sua presença real, viva, total. Fui à missa. E, como acontece tantas vezes, saí de lá com algo que não tinha quando entrei. Para além da comunhão sagrada, levei comigo as palavras do senhor padre — proferidas com serenidade, clareza e aquele dom raro de tornar o divino compreensível sem o banalizar. A homilia foi teológica, poética e, a espaços, até levemente humorada — como só sabem fazer os que conhecem a alma humana. Começou com uma pergunta simples e profundamente incisiva: "Quem é que se sen...

Eu, mãe, é que sei exatamente o que escrever

 Foi hoje, durante o intervalo. Estava encostada à rede, como tantas vezes, à espera de o ver, de o ouvir, de partilhar um momento daqueles só nossos, que só as mães conhecem. Entre o tilintar do recreio e os risos soltos dos colegas, ele aproximou-se de mim, com aquele ar meio distraído, meio cúmplice. "Mãe, tenho uma coisa para te entregar." Não sei porquê, mas aquela frase parou-me. Talvez fosse o tom. Talvez fosse o momento — tão banal, e ao mesmo tempo tão cheio de significado. "Umas coisas que a professora me deu na sexta-feira," disse ele, com a maior das naturalidades, como quem entrega um bilhete qualquer. Sorri. Ri, até. Há quanto tempo ele não fazia uma destas? Tão ele, tão próprio destas fases em que já não são pequenos, mas ainda não são crescidos. São as coisas de ser finalista. Mais tarde, quando o fui buscar para o almoço, a conversa voltou. Perguntei o que era aquilo afinal. Foi então que, com aquele jeito muito dele, meio teatral, meio sincero, me ...

Às Almas que Sentem (Ou Que Fingem Bem)

Crónica para os que ainda escutam com a alma Nunca imaginei — e digo isto com uma sinceridade que já não tem energia para maquilhar nada — que textos escritos entre uma crise de ansiedade e a lista de compras do supermercado, entre uma lágrima no caminho e o silêncio depois de desligar o telemóvel, pudessem chegar a alguém. Mas chegaram. Tocaram. Habitaram. E, segundo consta, até curaram. Não sou curandeira. Não sou terapeuta. Mal sei ser gente às vezes. Mas, aparentemente, basta ser honesta com a dor, e já se está a fazer mais do que metade do mundo. A ironia suprema disto tudo é que nunca escrevi para “chegar” a alguém. Escrevi para não morrer engasgada. Para não me afogar nas palavras que o corpo não conseguia chorar. Escrevi para não enlouquecer no meio da normalidade fingida. E foi nesse acto desesperado, quase primitivo, de escrever com a alma em carne viva, que encontrei eco. Gente que, sem me conhecer de lado nenhum, disse: “sou eu que estás a escrever.” Como se eu tivesse inva...

Voltar a mim: a liberdade de curar em silêncio

Houve uma altura em que me senti doente. Não era febre. Não era um vírus. Não era algo que um médico pudesse diagnosticar em cinco minutos de consulta. Era outra coisa — uma exaustão interna, um silêncio pesado, uma dor difusa que morava no corpo mas nascia na alma. Por vezes, sentia-me doente… e sabia, lá no fundo, que não era o remédio que faltava. Nem era o remédio que podia curar. O que eu realmente precisava — e não encontrava — era alívio. O alívio de não ter de me justificar constantemente. O alívio de poder existir sem ter de explicar cada gesto, cada escolha, cada silêncio. O alívio de não precisar de me defender. O alívio de um abraço que acolhe sem perguntar, de uma palavra que não julga, de um espaço onde eu pudesse ser quem sou — sem medo. Porque sim, o corpo adoece quando a alma está saturada. O corpo fala, quando silenciamos o que mais importa. Adoece-se de carregar peso demais, silêncio demais, medo demais. Adoece-se por dentro, lentamente, até que um dia já não se reco...

A Frontalidade, a Verdade e o Desastre da Língua Solta: Uma Reflexão sobre o Ofício de Saber Calar (e Saber Dizer)

Vivemos numa era estranhamente ruidosa. Tudo se diz, tudo se comenta, tudo se partilha, por vezes com tanto entusiasmo que se poderia jurar que o bom senso foi voluntariamente excluído do grupo. A frontalidade é agora proclamada como virtude absoluta, uma espécie de superpoder reservado aos “genuínos”, como se a autenticidade fosse sinónimo de brutalidade verbal — e a empatia, uma fraqueza patológica. Ora, convém começarmos por desfazer equívocos. A frontalidade é uma qualidade, sim, mas apenas quando temperada com inteligência. Caso contrário, é só má criação com um marketing moderno. Autenticidade tornou-se a palavra da moda — um chavão que as pessoas gostam de usar quando querem justificar comportamentos que, em qualquer outro século, seriam classificados como egocentrismo com laivos de drama. “Sou só eu a ser autêntica” diz-se, enquanto se atropela o outro com opiniões não solicitadas, julgamentos envoltos em “preocupação” e uma certa necessidade messiânica de “dizer as coisas como...

O Amor como Insubmissão Radical

Vivemos num tempo em que o amor foi convertido em slogan, domesticado pelo discurso mercantil da auto-ajuda, estetizado nas vitrines digitais como um estado de bem-estar permanente, sem atrito, sem fendas. Um simulacro confortável, higienizado de risco e de transcendência. Porém, o amor — o amor autêntico, irredutível, desobediente — não se deixa encapsular por narrativas utilitárias ou algoritmos sentimentais. Ele escapa. Ele excede. Ele irrompe. O amor é, antes de tudo, uma experiência ontológica. Não um simples estado afectivo, mas uma transfiguração do ser — como sugeria Martin Heidegger ao falar da abertura ao "ser-no-mundo" como uma entrega radical à presença. Amar verdadeiramente implica uma suspensão voluntária do ego como centro de gravidade, um descentramento que não é renúncia, mas expansão. Ao amar, não nos anulamos: abrimo-nos. Não nos dissolvemos: dilatamo-nos. Tal como em Emmanuel Levinas, que via no rosto do outro a origem da responsabilidade ética, o amor ver...

O que é ser voluntário num movimento da Igreja?

 Ser voluntário… ah, esta palavra que soa simples, mas que transporta o peso e a leveza do mundo. Ser voluntário é dizer “sim” sem garantias, é oferecer o tempo sem esperar recibo, é amar sem exigir retorno. E quando esse voluntariado acontece no seio de um movimento da Igreja, estamos perante algo ainda maior: um chamamento espiritual, uma missão da alma. Ser voluntário é olhar com olhos que verdadeiramente vêem — e não apenas observam. Porque ver o outro não é notar a roupa que enverga ou o tom da sua voz. É discernir a alma que grita por dentro, mesmo quando o rosto esboça um sorriso por fora. Ser voluntário é escutar com ouvidos que acolhem — não apenas captam som. É captar o que não foi dito, o que se esconde nas entrelinhas do silêncio, no intervalo entre uma lágrima contida e um “está tudo bem” mal disfarçado. É necessária coragem. Mas não a coragem ruidosa dos heróis de ficção — é a coragem serena de quem enfrenta a indiferença com afecto, a pressa com paciência, a superfic...

A Indiferença: A Arte Subtil de Assassinar Sentimentos com Luvas de Seda

Há formas de violência que não deixam nódoas negras nem escândalos. Não aparecem em séries policiais, não alimentam manchetes sensacionalistas, não gritam, não batem portas. Mas matam. Devagarinho. Com classe. Com uma pontaria clínica. Falo, claro, da indiferença — essa arte refinada de desaparecer estando presente, de coexistir sem comungar, de olhar sem ver, de ouvir sem escutar. A indiferença é o assassinato passivo-agressivo do afeto. Quando alguém se torna indiferente, não é apenas o silêncio que se instala: é o eclipse de tudo o que antes pulsava. A confiança, antes firme como uma pedra, torna-se areia. A segurança emocional esfarela-se como um castelo em dia de maré cheia. A relação, antes palco de diálogos, beijos, sorrisos cúmplices e até discussões épicas sobre onde jantar, transforma-se numa sala de espera onde ninguém chama o teu nome. Porque o amor — esse bicho complicado — não vive de grandes gestos encenados nas redes sociais, mas de pequenos cuidados quotidianos. Amar é...

Corro, logo vivo: um manifesto em movimento

 Há quem diga que a vida é uma corrida. Mas poucos compreendem que há corridas que não se fazem por obrigação — fazem-se por escolha, por paixão, por entrega. Corro, sim. Corro todos os dias. Não por estar perdida no tempo, mas por estar intensamente presente nele. Corro porque quero. Porque cada passo é uma afirmação do meu compromisso com a vida. O meu dia não é um alinhamento mecânico de tarefas: é uma coreografia de intenções. De manhã, o despertador não toca — chama-me. Acordo com o coração cheio, pronta para conciliar dois trabalhos como quem mistura cores numa paleta: diferentes, sim, mas parte do mesmo quadro. Trabalho não é fardo, é expressão. É ali que coloco o melhor de mim, que encontro sentido, que planto sementes para um amanhã mais sólido. Depois, corro para almoçar com a minha família, numa aldeia linda que me devolve o silêncio da terra, o cheiro do pão quente, o som da vida sem pressa. A mesa posta é mais do que um lugar de comida: é altar de afectos, de histórias...

O que é bom corre (e às vezes voa)

Crónica de uma mãe maravilhada, emocionalmente lúcida, exausta com dignidade e com ascendente demoníaco assumido. O tempo não anda — dispara. Não caminha em linha recta, nem avisa quando vai acelerar. Não tem modos. É um atropelo invisível. Quando dei por mim, já estamos a fechar um ciclo. E o que sobra é uma saudade daquelas boas: sentida, clara, com sabor a missão cumprida. O meu filho já sente falta da professora. E eu também. Não é saudade pela rotina — vamos ser honestos, a rotina é, muitas vezes, um ritual matinal de sobrevivência e caos disfarçado de normalidade. É o circo logístico de todos os dias: mochila feita à pressa, meia perdida, lanche renegociado, e aquele olhar mortiço que só uma mãe em modo automático conhece. Mas existe algo especial. Algo que só se encontra quando o mundo conspira — para o bem. Encontrámos uma professora, uma escola, um lugar que nos aceitou, aceita como somos. Sem a necessidade de teatrinhos, sem máscaras, sem ter de fingir que eu sou a mãe perfei...

Uma Semana Sagrada em Mim

 Esta semana não começou apenas com um novo ciclo de dias, mas com um renovar da alma. Há gestos que, embora simples, se tornam fundações de tudo o que somos — e o primeiro tem sido este: oferecer o meu dia ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Não como um ritual vazio, mas como um acto vivo de entrega consciente. Entrego-lhes as minhas alegrias, sim, mas também os meus medos, as dores que teimam em permanecer em silêncio, e as tribulações que tantas vezes se disfarçam de pequenas inquietações. Neste acto de entrega reside uma sabedoria antiga: reconhecer que não caminho só. Quando peço ao Espírito Santo que fortaleça os seus dons em mim — sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus — não o faço apenas para mim, mas para que, em mim, o outro também encontre abrigo. Tenho buscado com mais intenção que cada pessoa que se cruza no meu caminho se sinta vista, ouvida, acolhida. Que o meu olhar não seja julgamento, mas espelho; que as minhas palavras nã...

Entre Máscaras, Verdades e Sarcasmos:

 Reflexão de uma Mulher Inteira Há algo de sublime — e simultaneamente desconfortável — em conviver com quem não usa máscaras. Desconcertante, talvez, para os que se habituaram à hipocrisia social mascarada de polidez. Um verdadeiro privilégio, para os que, como eu, preferem a crueza da autenticidade à seda fingida da dissimulação. Conviver com seres autênticos, imperfeitos, pecadores, sinceros, humanos — inteiramente humanos — é respirar ar puro num mundo viciado em aparências. Gente que sangra, que falha, que ri alto, que chora quando ninguém vê, que tropeça na própria sombra e ainda assim continua, com dignidade, a sua marcha imperfeita. Gente que não se envergonha de ser gente. Mas o melhor de tudo — e talvez a mais doce liberdade — é poder ser eu. Inteira. Com todas as minhas camadas, contradições, quedas e epifanias. Ser eu, com este sentido de humor que muitos não compreendem — sarcástico, por vezes negro, frequentemente ácido, sempre acutilante. Um humor que serve tanto com...

Pentecostes.

  Pentecostes: quando o Céu desce à terra e a terra se abre ao Céu Há momentos na história da fé que não são apenas narrativas passadas, mas contínuos chamamentos para que despertemos o que em nós dorme. Pentecostes é, talvez, o mais vibrante desses momentos. Não se trata apenas de um episódio em Actos dos Apóstolos. Trata-se de um acontecimento eterno, vivo, perene. Um sopro que atravessa séculos e civilizações para encontrar morada nos corações sedentos de verdade, liberdade e comunhão. Naquele dia singular, reunidos no Cenáculo, os discípulos não esperavam uma tempestade de fogo, nem línguas que falassem em uníssono com a diversidade do mundo. Eles esperavam, talvez, apenas resistir à dor da ausência. Mas o Espírito não veio para que resistissem. Veio para que renascessem. Não lhes trouxe apenas conforto, trouxe-lhes missão. Não os envolveu apenas com ternura, mas com ousadia. E isso muda tudo. Porque é precisamente isso que o Espírito faz: transforma. Mas não uma transformação ...

A Verdade Roubada: As Sombras Onde Crescem as Mentiras

O ser humano, criatura de engenho e abismo, é capaz de actos de sublime beleza, mas também de crimes silenciosos, de torpezas tão subtis que se esgueiram pelos interstícios da consciência alheia. Não é nas grandes proclamações, nem sob o sol da evidência, que se constrói o mal mais profundo — é nas sombras. É aí, nas costas dos outros, no silêncio malicioso e nos sorrisos disfarçados, que se moldam as mentiras mais eficazes: aquelas que, ditas com persistência, começam a parecer verdades. Aquelas que, reiteradas na ausência do visado, tornam-se a única narrativa possível para os que apenas ouvem uma versão, para os que, sem saber, passam a carregar uma verdade adulterada como se fosse sua. Há algo de perversamente engenhoso nesta capacidade: transformar palavras falsas em realidades sociais. Uma mentira, quando dita em segredo e repetida com ar grave, adquire uma gravidade usurpada. Como uma mancha num tecido branco, infiltra-se subtilmente no tecido da percepção colectiva. Não precisa...

A Estética do Julgamento: Uma Anatomia do Apontar

Vivemos mergulhadas num tempo de estrondosa superficialidade moral, onde o ruído substitui o pensamento e a pressa do julgamento eclipsa qualquer tentativa séria de compreensão. A sociedade contemporânea, engalanada de avanços tecnológicos e conquistas materiais, revela, contudo, uma miséria espiritual que se expressa no gesto automático de apontar o dedo, julgar, condenar. Este gesto tornou-se quotidiano, reflexo, pulsão de um mundo que perdeu a capacidade de introspecção e substituiu a empatia pela opinião, a escuta pelo veredicto, a complexidade pelo simplismo redutor. É curioso observar como se tornou comum ouvir vozes a lamentar a perda de valores, a rarefacção da empatia, o declínio da generosidade, como se tais constatações, proferidas com um certo ar de superioridade e desencanto, fossem elas próprias actos redentores. Aponta-se a ferocidade do mundo com um certo deleite, como quem se coloca fora dele, incólume, nobre, ítalo-moralmente intacta. Fala-se da humanidade como se não...

Morro. Todos os dias. E não é figura de estilo.

 Adormeço? Não. Eu morro. Todos os dias. Às vezes sentada. Outras vezes a caminho do banho. Houve uma terça-feira em que morri com uma chávena na mão e o nome de Kierkegaard na boca. Nem tive tempo de acabar o pensamento — ou a chávena. O que me mata não é um grande drama — é o milagre quotidiano de tentar fazer tudo. E o mais estranho é que, na maior parte dos dias, quase consigo. Sim, sou uma daquelas criaturas raras, em vias de extinção, que consegue manter uma vida de estudo autodidata em psicologia, teologia, filosofia, enquanto ajuda os outros, vai à missa, faz voluntariado, cozinha (às vezes bem), faz agachamentos com a mesma fé com que reza, e ainda tem tempo para discutir com o marido — que, aliás, é o mesmo homem com quem namorei pela primeira vez. Eu sei. É quase imoral. Sou um paradoxo com pés. Ou com sapatilhas de corrida, vá. Porque sim, também gosto de mexer o corpo. Transpiro ideias e glúteos. O meu dia começa com força e termina em colapso. No início da manhã, sou ...

A Anatomia da Dor: Da Traição à Redenção

 Há momentos na vida que nos dividem para sempre. Não pela sua violência exterior, mas pela força sísmica com que reconfiguram o nosso interior. A traição é um desses momentos. Não é apenas um acto — é uma fractura na estrutura invisível da confiança. Um colapso moral, emocional e, por vezes, espiritual. É a negação do pacto invisível que une duas almas, sejam elas amantes, amigos, familiares ou companheiros de jornada. Onde existia um lugar sagrado, uma casa feita de palavras e gestos, instala-se o vazio. Um vazio que ecoa. A traição é plural. No amor, manifesta-se como infidelidade — física ou emocional —, e transforma o corpo antes desejado num estranho, e o lar partilhado num cenário de guerra surda. Na amizade, é o abandono súbito, a confidência exposta, o silêncio cúmplice do que não nos defende. Na política, é a promessa renegada, o jogo de interesses que substitui a ética pelo oportunismo. E há ainda a mais dolorosa de todas: a auto-traição — quando nos negamos por medo, qu...

Mais do que Sonhei

(crónica íntima de uma mulher inteira) Perguntam-me, às vezes com aquele olhar de quem antecipa desilusões mansas ou frustrações bem disfarçadas: — Realizaste os teus sonhos? E a pergunta, aparentemente inocente, cai-me no peito como um eco antigo. Não sei respondê-la com uma frase curta. Não cabe num sim. Nem num não. Cabe, talvez, numa vida inteira. Ou, se me permitem, neste texto. Não, não realizei os meus sonhos. Realizei mais. Muito mais. Sonhar é por vezes um acto tímido, quase defensivo — um esboço da esperança, comedida, cautelosa, para não ferir o coração. Mas viver… ah, viver é outra coisa. Viver é cair de olhos abertos no imprevisível e descobrir que há abismos que são voo. É tropeçar no inesperado e dar-se conta de que o milagre mora onde nunca ousámos procurar. Nunca sonhei amar assim — e muito menos ser amada como sou. Não por falta de desejo, mas por uma espécie de cepticismo elegante, desses que nos servem de armadura. Esperava talvez alguma paixão fugaz, intensa como u...