Fechei a matraca.

 Olha, vou dizer-te: eu era daquelas que não só falava demais como falava com gosto, com requinte, com método quase científico. Contava tudo: planos, desgraças, amores, desgostos, dívidas, desejos, calos nos pés, tudo embalado num entusiasmo tão grande que até parecia que quem me ouvia tinha pago bilhete para assistir ao grande espectáculo da minha vida interior.

Era de tal maneira grave que se me perguntasses as horas eu dizia-te a história do relógio, quem mo tinha dado, porque o estava a usar naquele dia, o que tinha sonhado na noite anterior, e no fim já nem eu sabia que horas eram. Um exagero, eu sei. Mas era mais forte do que eu: a língua vinha-me à boca como maré cheia, imparável.

E o pior é que eu fazia isto com a maior das ingenuidades, cheia daquela fé cega de que toda a gente que sorri é boa pessoa, que toda a cabeça que acena é cúmplice, que toda a boca que diz “que bonito!” é sincera. Como se não houvesse por aí gente que reza para que tudo o que é meu corra pior do que um guarda-chuva roto em dia de vendaval.

Claro que a vida — sempre com aquele sentido de humor tão particular, um humor quase cruel — ensinou-me à bruta. Porque comecei a reparar que os sonhos que eu contava com mais entusiasmo eram exactamente os que morriam mais depressa. E morriam não por falta de força ou de trabalho, mas porque, assim que as palavras saíam da minha boca, era como se soltassem um cheiro a sangue que atraía todos os tubarões da inveja num raio de quilómetros.

A verdade? Eu falava, falava… e cavava a cova dos meus próprios projectos com a minha própria língua. É cómico agora, mas na altura dava vontade de bater com a cabeça na parede da sacristia.

Um dia, farta de ver a coisa a correr sempre pelo cano, parei. Sim, parei mesmo. Fechei a boca, guardei o coração num cofre sem chave debaixo da língua e descobri uma coisa quase milagrosa: o silêncio. Não aquele silêncio constrangedor de quem não tem nada a dizer, mas o silêncio activo, quase sofisticado, que protege, que guarda, que alimenta por dentro sem precisar de aplausos de fora.

E foi aí que percebi, com um riso meio amargo, meio triunfante, que nem toda a gente merece saber o que me faz feliz, muito menos o que me dói. Porque há por aí uns espécimes raros, meio bípedes, meio urubus, que invejam até o que ainda não aconteceu — e que se alimentam do simples facto de saber que tu tens esperança.

Eu ria-me de mim própria. De como era tonta ao ponto de pensar que contar tudo me fazia mais próxima dos outros, mais amada, mais compreendida. A sério, parecia uma adolescente a escrever diário num megafone. Um talento natural para a auto-sabotagem, digamos.

E sabes o que é ainda mais hilariante? É que, desde que fechei a matraca, desde que deixei de andar por aí a dar palestras grátis sobre os meus planos, tudo começou a fluir. Coincidências? Talvez. Ou talvez seja porque o inimigo, coitado, também precisa de pistas para saber onde espetar a faca. Se não lhe deres o mapa, anda às cegas.

É que antes eu abria a boca por tudo e por nada, e o que recebia em troca? Palmadinhas nas costas carregadas de veneno, conselhos disfarçados de maldição e aquele clássico “Ai, tens a certeza? Conheço quem tentou e deu-se mal…” — como quem diz “oxalá contigo também dê errado, só para eu não ter de engolir a minha frustração”.

Agora? Agora mantenho-me calada. Quem me pergunta “então, novidades?” recebe o meu melhor sorriso de catálogo e um educado “tudo tranquilo, graças a Deus” — e fico a saborear, só para mim, o prazer de saber que há coisas que só eu e Deus conhecemos. É delicioso, acredita.

E como mulher católica, já com uns quantos terços rezados e outros tantos pecados confessados, digo-te: não há penitência melhor do que aprender a calar-se. Custa ao início — parece que falta o ar, quase como quem deixa o tabaco. Mas depois passa. E o sabor da liberdade de não ter de explicar nada a ninguém é viciante.

Agora olho para trás e rio-me. Rio-me do quão desesperada eu estava por ser ouvida, por ter plateia, por sentir que alguém se importava. E rio-me mais ainda porque percebi que quem realmente gosta de nós não precisa que lhes digamos tudo: percebe, sente, e, sobretudo, reza por nós em silêncio. O resto? Quer saber, não para te ajudar, mas para te segurar lá em baixo, caso te atrevas a subir.

E se há coisa que aprendi nestes meses de boca fechada, é que há sonhos que só florescem na sombra, longe dos olhos invejosos. E que falar menos não me tornou mais fria, nem mais distante — tornou-me mais livre, mais leve e, convenhamos, muito mais divertida para mim própria.

Porque há um gozo quase perverso em ver quem andava habituado a saber tudo perguntar, perguntar… e ficar a arder na curiosidade. É como oferecer um doce e depois ficar com ele só para ti. Cruel? Talvez. Mas tremendamente satisfatório.

E agora vivo assim: falo pouco, rio muito e rezo mais ainda. E quando a língua coça, lembro-me do passado, da minha própria figurinha a despejar a alma inteira à primeira orelha que me sorrisse. Lembro-me do que paguei por isso. E calo-me.

E o mais irónico de tudo? É que foi no silêncio que finalmente comecei a ser ouvida — por Quem realmente importa.

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