12/07/25 📜 Entre Jerusalém e Jericó: Ensaio académico e teológico sobre a parábola do Bom Samaritano e a dualidade do coração humano

✒ Introdução

A parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37) permanece, há mais de dois milénios, como uma das narrativas mais profundamente humanas, teológicas e existencialmente provocadoras do Evangelho. Mais do que um apelo moral à bondade, ela é um espelho que expõe as contradições da alma humana, as ambiguidades da religião e a tensão constante entre o sagrado e o profano.

Entre Jerusalém — cidade santa, símbolo da presença de Deus — e Jericó — associada ao pecado e à queda — percorre-se um caminho real e simbólico que representa a condição humana: a luta diária entre o bem e o mal que habita em cada um de nós.

A questão que ecoa é simples e devastadora:

Como posso dizer que sou cristã, se não amo, não perdoo, não tenho misericórdia?

Este ensaio propõe-se a mergulhar neste relato com rigor académico, sensibilidade poética e profundidade espiritual, para desvendar a inteligência narrativa de Cristo, as implicações teológicas do gesto do samaritano e, sobretudo, o apelo actual que ressoa em cada consciência.


🌿 1. O cenário e a sua inteligência simbólica

A escolha do caminho entre Jerusalém e Jericó não é casual: era uma estrada histórica, sinuosa, descendo cerca de 1000 metros em apenas 27 quilómetros, conhecida pelos assaltos e perigos.

Na tradição judaica e cristã, Jerusalém representa o lugar da presença divina, o centro do culto, a cidade santa (cf. Sl 122). Já Jericó, situada no vale do Jordão, era vista como símbolo da mundanidade, do afastamento de Deus, por ter sido palco de pecados antigos (cf. Js 6, 26).

Ao situar a narrativa neste percurso, Jesus revela a genialidade do seu ensino:

Descer de Jerusalém a Jericó simboliza a condição do homem que se afasta da santidade e se expõe à violência do pecado.

O caminho é a própria vida humana: perigosa, incerta, marcada por quedas, escolhas e encontros.

Esta inteligência narrativa liga a geografia concreta a uma catequese profunda: todos vivemos “entre Jerusalém e Jericó”, divididos entre o anseio pelo sagrado e as seduções do pecado.


🕊 2. O sacerdote, o levita e o peso da Lei

À primeira vista, choca-nos a atitude do sacerdote e do levita, figuras piedosas, que vêem o homem ferido e seguem adiante.

Historicamente, há que compreender: segundo a Lei (cf. Nm 19,11-13), tocar um morto ou alguém com sangue tornava-os ritualmente impuros, impedindo-os de exercer funções cultuais, essenciais para a comunidade.

A sua escolha nasce não apenas de frieza, mas do conflito entre dois deveres: o serviço litúrgico e o socorro imediato.

É aqui que a parábola se torna agudamente actual:

✔ Quantas vezes também nós justificamos a indiferença com razões legítimas?

✔ Quantas vezes sacrificamos o amor concreto ao outro em nome de rotinas, regras ou medos?

Esta tensão revela algo fundamental: o mal em nós nem sempre se manifesta como maldade; surge, muitas vezes, disfarçado de zelo, prudência ou necessidade.


✨ 3. O gesto do samaritano: compaixão encarnada

O contraste é total: quem socorre não é o homem piedoso, mas o samaritano — membro de um povo considerado herege pelos judeus (cf. 2 Rs 17,24-41).

Ele vê, sente compaixão, aproxima-se, toca, cuida, paga, promete voltar (cf. Lc 10, 33-35). Não é só emoção: é amor tornado acção concreta.

O relato mostra uma caridade ponderada e responsável:

O samaritano continua viagem após ajudar, pois também tinha deveres;

Mas não ignora a urgência do sofrimento que encontra.

Teologicamente, aqui está o coração da parábola: Deus não se revela apenas no templo, mas no gesto que limpa feridas na estrada.

Como afirmava Santo Agostinho, “o samaritano representa Cristo que Se faz próximo de cada homem ferido pelo pecado” (cf. Enarrationes in Psalmos, 90).


🪞 4. O próximo e a luta interior: quem somos nós?

A pergunta inicial (“Quem é o meu próximo?”) transforma-se na resposta final de Jesus: “Vai e faz tu o mesmo” (Lc 10, 37).

O próximo não depende da identidade de quem está caído, mas da decisão de quem passa: sou eu que escolho ser próximo.

Eis a provocação mais incisiva: todos somos, a cada dia, homem ferido, homem que passa e homem que pára.

Vivemos uma luta interior constante:

Entre o bem e o mal que nos habitam;

Entre Jerusalém e Jericó;

Entre o medo de perder algo (tempo, pureza, reputação) e a coragem de amar.

Este combate não é sinal de hipocrisia, mas da verdade da nossa liberdade: somos capazes de heroísmo e de omissão.


⚖ 5. “Como posso dizer que sou cristã se não amo, não perdoo, não tenho misericórdia?”

Esta pergunta torna-se critério de autenticidade cristã.

O Evangelho é claro: a fé sem obras está morta (cf. Tg 2, 17). Não basta repetir fórmulas ou participar em ritos se, diante do ferido, fecho o coração.

✔ Amar quem não merece.

✔ Perdoar quem nos fere.

✔ Ter misericórdia, mesmo quando dói.

Este é o sinal distintivo do cristão. Como afirmava São João Crisóstomo:

“Não há nada mais frio do que um cristão que não se preocupa com a salvação do próximo” (Homilias sobre Atos, 20).


🕊 6. A necessidade da sabedoria do Espírito Santo

Compreender esta parábola não é apenas exercício intelectual: requer a luz do Espírito Santo, pois só Ele transforma a letra morta em Palavra viva.

O Espírito ensina-nos que:

A pureza maior não é ritual, mas do coração.

O culto mais autêntico é amar concretamente o outro.

A santidade verdadeira nasce da compaixão encarnada.


🌾 Conclusão: entre Jerusalém e Jericó, o amor que se faz caminho

A parábola do Bom Samaritano não é apenas história antiga, mas apelo urgente: ser cristão é fazer-se próximo, mesmo sabendo que custa, mesmo sabendo que não somos perfeitos.

Entre Jerusalém e Jericó, entre o bem e o mal, entre a lei e a compaixão, decide-se a verdade da nossa fé.

No fim, não seremos julgados pelas palavras que dissemos, mas pelo amor que demos; não pelo que sabíamos, mas pelo que ousámos viver; não pelo medo que sentimos, mas pela misericórdia que praticámos.

Como posso dizer que sou cristã, se não amo, não perdoo, não tenho misericórdia?

Esta é a pergunta que salva — e que, se acolhida com verdade, transforma a estrada perigosa da vida numa via de graça.


📚 Sugestões de leitura complementar

Santo Agostinho, Sermões sobre o Evangelho de Lucas.

São João Crisóstomo, Homilias sobre Atos.

Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 30-33 (sobre a misericórdia).

Bento XVI, Jesus de Nazaré, vol. I (capítulo sobre as parábolas).

Papa Francisco, Evangelii Gaudium (especialmente §§ 193-197).

José Tolentino Mendonça, Nenhum Caminho Será Longo.


📌 Notas explicativas

Num 19,11-13: normas de pureza relativas ao contacto com mortos.

Lc 10,25-37: texto integral da parábola.

Sl 122: Jerusalém como cidade santa.

Tg 2,17: “A fé sem obras é morta.”

Enarrationes in Psalmos e Homilias: obras patrísticas que comentam o sentido espiritual das Escrituras.

Mensagens populares deste blogue

Ousadia Incompreendida

Uma Professora Excepcional, Ser Humano Incrível, Esposa, Mãe e Amiga

O Corpo Não Mente